O
caseiro e seus familiares diziam que a chácara era assombrada. Que a noite,
cavaleiros fantasmas
cruzavam a propriedade arrastando negros escravos. Diziam
que aqueles espíritos estavam condenados na outra vida a repetir os atos
praticados antes da morte. Eu e minha namorada achamos divertidas as histórias.
Era um tanto mais interessante que muitos filmes. Estávamos na propriedade do
tio dela para um fim de semana e era renovador poder relaxar naquele lugar. À
noite, tomando um bom vinho, ouvimos as histórias assustadoras do encarregado
do lugar. O homem falou que a chácara já fora uma fazenda enorme. O terreno onde
estávamos era apenas um quarto do original. Tudo era maior e pertencia a único
dono, um senhor de escravos e plantador de cana de açúcar. O homem falava gesticulando,
apontando os lugares, construindo narrativas e extensões com as mãos. Disse que
ali muita gente vivera e morrera, por isso tantos assombros. Mas disse que não
nos preocupássemos, pois os espectros apareciam em geral a distância, sumiam e
eram inofensivos. Obviamente que não acreditei naquelas histórias ao pé da
letra. No entanto, naquela noite tive um sonho terrível... Ou talvez nem tenha
sido um sonho. Em um dado momento, no meio da noite, eu me vi caminhando
sozinho na varanda da casa principal. Olhei para a extensão do terreno e vi um
enorme alazão montado por uma figura enorme e imponente. Apesar de sua estatura
e aparente vigor, o homem vinha de cabeça baixa. Ao se aproximar da casa, fui
ao seu encontro. Então vi que havia dois homens de cada lado, vindo com ele. Os
três eram negros. A imagem era tão clara e simples que não me causou assombro
ou receio algum. Ao se aproximarem, percebi que os dois homens estavam presos
ao cavaleiro por cordas. Eles pararam diante de mim... – Aqui estão os negos
fugidos, patrão... Pode me deixar ir agora? – falou o homem sobre o cavalo num
tom choroso. Olhei dele para os prisioneiros e vi que os dois tinham rostos
inanimados, parecendo feitos de pedra. Então a lembrança das aulas de história
do Brasil me vieram a mente, o período colonial com seus personagens tão
marcantes: Senhor de engenho, feitor, escravos e o Capitão do mato! Ali estava
o homem encarregado de capturar os escravos que fugiam. O negro temido e
desprezado por todos. Mas ele começou a chorar. Percebi que não eram cordas que
o prendia aos outros dois, mas pedaços do seu intestino. Seus cativos
pareciam-lhe um peso. Era como uma condenação. Uma sensação terrível de pavor
indescritível tomou conta de mim nesse momento. Caí no chão, senti o cheiro de
terra. O lamento daquele homem enorme me encheu os ouvidos. Então era possível
uma eternidade de sofrimento pelos atos praticados em vida? Aquele sujeito
parecia bem atormentado e arrependido... Acordei na minha cama e assim que
comecei a apreciar o alívio de um sonho, senti meus pés úmidos, a roupa suja...
Fiquei de pé e percebi que tinha o aspecto de quem tinha chafurdado na terra...
A terra da chácara.
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