Alguém
disse uma vez que o que faz um ser humano é a sua infância. Que essa fase na
vida marca e
decide definitivamente o que seremos para o resto da vida. Quando
penso no passado, quando iniciava essa vida, eu recordo bastante de Dona Rosa.
Ela sempre esteve presente na minha vida pelo que sei. E ao que parecia, havia
sido babá de minha mãe e seus irmãos. Tinha sido tomada sob a proteção de meu
avô e acumulava o cargo de governanta, babá, conselheira e guardiã da família. Agora
assistia, meus primos, irmãos e eu. Eu que era um garoto frágil, de cadeiras de
rodas, que mal deixava o quarto. Fui ficando por ali enquanto os outros meninos
corriam em volta da varanda da casa e subiam nas goiabeiras e brincavam de
esconder. Sempre ficava olhando meus primos e irmãos se divertindo ruidosamente
enquanto eu ficava para trás, sozinho com meus pensamentos, naquela casa
enorme, antiga e cheia de recordações. Acho até que um dia todos esqueceram de
mim. Inclusive meus pais e eu me sentia vivendo numa bruma de sonho. Os outros
passaram a me ignorar, fugir de mim. Mas Dona Rosa, não. Ela fazia questão de juntar
os moleques no quarto e contar histórias assombrosas para todos nós. Demostrava
claramente que conhecia esse mundo de fantasmas e monstros. E que via coisas
que em geral as pessoas não podiam enxergar. Narrava histórias de almas penadas
que transitavam na rua do hospital e surgiam para transeuntes desavisados que
tremiam de pavor e nunca suspeitavam que aqueles mortos recentes estavam apenas
deslocados. Mas claro, advertia Dona Rosa, havia também os maus espíritos. Alma
de gente ruim presa entre os mundos. Aliás, para se ficar preso entre mortos e
vivos, explicava ela, era necessário ter algum apego à vida que não deixava o
espírito partir. Dona Rosa também dissertava sobre demonologia numa lista e
esclarecimentos que pareciam não ter fim. Dizia que desde pequena via o outro
lado. Um mundo de duendes, entidades, almas e diabos que só podiam ser vistos
por algumas pessoas. Colecionava inúmeros relatos com finais felizes, outros
nem tanto, e sempre fazia advertências para a prática do bem e do respeito.
Além de resignação diante da vida. Censurava as paixões, citando exemplos em
suas histórias sobre gente leviana e passional que não se dava bem no fim. A
mulher contava suas histórias para todos, mas eram sobretudo, nós as crianças, os
mais interessados e, entre eles, eu, o que mais gostava de ouvi-la. Dona Rosa
foi de suma importância para mim. Ainda mais porque me ensinou aspectos da
existência que transcendiam a rotina de qualquer criança. Foi com ela que
descobri os segredos da vida e da morte, o aspecto do abandono dos meus pais e
a indiferença das outras crianças. Eu estava morto e não sabia. Preso naquele
quarto, ainda esperava atenções e observava desejoso meus primos e irmãos. Não
podia discernir entre antes e depois e que não vivia mais. Dona Rosa foi a
única que não se espantou comigo ou me ignorou. Antes, me acolheu como um dos
vivos e foi me ensinando e me oferecendo carinho para além dos mundos.sexta-feira, 31 de maio de 2019
segunda-feira, 27 de maio de 2019
DANI MORTA (Conto de terror)
A
coisa começou quando o primeiro foi encontrado morto na calçada da casa dela. A
casa
desocupada onde Daniela tinha sido estuprada e morta por três homens.
Agora vazia, as portas e janelas fechadas com tijolos, não para que ninguém
entrasse, mas para que não fosse visto seu interior e supostas aparições.
Outros achavam melhor como estava. O reboco caindo e o jardim repleto de ervas
daninhas completavam a imagem de desolação. O morto fora esfaqueado e jazia de
barriga para cima. Tinha inúmeras perfurações, os olhos abertos fitando o céu.
Provavelmente tinha encarado seu algoz com expressão parecida. Nas mãos, muitos
ferimentos de defesa. O inusitado eram os múltiplos golpes aplicados nas
nádegas do indivíduo. Isso indicava o caráter da punição. Imediatamente as
pessoas começaram a falar que o espírito de Daniela era espírito vingador. A
garota, quando viva, chamava atenção no bairro porque era muito jovem, 21 anos
e dependente. Trabalhava e cursava enfermagem. Era uma pessoa bondosa que
ajudava velhos e pobres em trabalho voluntário. E chamava a atenção por morar
sozinha. Era praticamente uma menina, mas vivia sem companhia alguma numa casa
enorme, fruto de rompimento com a família. Uma noite, três indivíduos invadiram
a residência, violentaram-na e depois a mataram. A vizinhança ficou chocada.
Depois passaram a dizer que seu fantasma podia ser visto em prantos pela janela,
diante da porta. Alguns evitavam olhar a residência, principalmente à noite,
outros faziam o contrário e declaravam que a garota era uma espécie de santa.
Um dia fecharam tudo com tijolos. Sabiam quem tinha cometido o crime, mas
naquela periferia violenta e assustada, esquecida, reinava o silêncio e a
impunidade. “Mas eles vão pagar!”, diziam as pessoas. “Ela era um anjo em
vida!” Em menos de um ano depois do crime, estavam todos mortos. Teve esse na
calçada, com incontáveis perfurações, muitas no traseiro. O outro foi,
incrivelmente empalado num poste de metal, a placa que tinha nele, amassada e
jogada no chão. Foi bem na esquina da rua onde Dani vivera. Encontrado também
ao amanhecer. Os peritos disseram que tal exibição macabra só seria possível
com ajuda de pelo menos 3 homens fortes, que o povo da rua devia estar
mentindo, omitindo alguma coisa. Mas as pessoas balançavam a cabeça diziam:
“Foi a Dani!” O terceiro agressor começou a padecer de problemas mentais.
Confessou o delito em público, dizia que via a garota pelos cantos, que ela
falava que ele teria destino pior que seus cúmplices. Ele ficou vivendo em
situação deplorável, quase como um mendigo. Desapareceu. Semanas depois
percebeu-se um cheiro de pobre vindo da residência de Dani. Encontraram o
estuprador morto em seu interior. Deixara um bilhete confessando mais uma vez
seu crime. Acreditou-se que entrara por cima da casa, afastando as telhas e
depois colocando-as de volta cuidadosamente. O que ninguém sabia era como tinha
sido degolado. De maneira tão vigorosa que quase teve a cabeça separada do
corpo. Para a vizinhança não havia dúvidas de quem assassinara os homens.sábado, 25 de maio de 2019
SETE COUROS parte 5 (Contos de terror)
Sete
couros extrapolou os limites quando cometeu um crime que o colocou nas
manchetes nacionais.
O ano era 1987. Há detalhes do acontecimento que as
pessoas comentam até hoje. Alguns são explicáveis, outros nem tanto. Manuel
estava numa noite de sábado em um bar que não costumava frequentar. Teve um
desentendimento com o dono do lugar e foi expulso sob vaias das pessoas que lá
estavam. O bandido simplesmente tomou seu caminho, mas voltou meia hora depois
com duas pistolas automáticas e começou a atirar nas pessoas. Sete morreram e
quinze ficaram feridos. O dono do bar, incrivelmente, foi atingido à distância
com um tiro na cabeça, mesmo estando no meio das pessoas. Visitei o local que
não é mais bar, mas ainda mantem a estrutura básica de antes. Agora é uma
oficina mecânica e os espaços antes preenchidos por mesas e cadeiras é ocupado
por carros, motores e homens sujos de graxa. O filho do falecido proprietário
do lugar, agora no comando da oficina, estava presente na noite do crime. “Eu
era garoto e estava perto do caixa, atrás do balcão e vi quando ele chegou”,
contou o homem em pé, ao meu lado bem na entrada do imóvel. Apontou na direção
dos trabalhadores. “Meu pai estava lá, bem no fim, conversando com um cliente,
ele parou aqui e atirou. Papai caiu e aí começou a correria e mais tiros. Um
empregado me puxou para debaixo do balcão e eu não vi mais nada”. Esse feito
chamou a atenção das pessoas e quando preso, o assassino disse que os demônios
tinham guiado sua mão. Sete couros não tinha o costume de atirar, mas já o
fizera algumas vezes, não era absurdo que tivesse boa mira ou tivesse sorte no
primeiro disparo. As armas que usou naquele dia também foram alvo de
controvérsia por serem novas e sofisticadas. Sete disse que os demônios tinham
lhe dado. Isso ajudou a aumentar a aura diabólica em volta dele. Como era um
bandido pobre, então esse presente só podia ser dos infernos, acreditaram. No
entanto é mais lógico pensar que, apesar de pobre, não era absurdo que um homem
dedicado ao crime como ele pudesse um dia se apossar de armas como aquelas.
Ainda mais que já se envolvera com assaltantes de alto nível. Mas preferiu-se
crer que Sete couros cometeu o crime sob influência e ajuda diabólica. Isso foi
reforçado porque sobreviventes declararam que o assassino exibia olhos
vermelhos no momento do crime e que pequenos diabos o acompanhavam e riam com
ele enquanto caminhava e atirava. Falei com três testemunhas pessoalmente e
todas elas, mesmo relutantes em falar, me contaram a mesma coisa: havia algo de
demoníaco em Sete couros e ele não estava sozinho. Seus olhos estavam acesos
como brasas e um grupo de anões deformados o seguia. Um deles inclusive, segurava
Sete pela cintura com uma mão, com a outra, apontava as vítimas para o matador.
Em meio ao som dos tiros, gritos e barulho de coisas caindo no chão, se ouvia a
risada desses supostos diabos. Outros sobreviventes do massacre contaram que
Sete tinha o rosto tão demoníaco que pensaram que ele estivesse usando uma
máscara de carnaval. “Eu estava na entrada, numa mesa no canto, caí no chão e
fiquei encolhida quando começou. Pensei que fosse morrer de tiro ou de medo,
mas não deixei de olhar. Ele passou de costas para mim, seguido por uns
baixinhos horríveis. Teve um momento que se virou de lado e eu vi a cara
dele... Parecia um monstro de filme, os olhos acesos, a boca aberta com dentes
enormes”, me contou Lara, outra sobrevivente. A mulher acha que sobreviveu
porque o assassino concentrou seus tiros em direção aos fundos do bar onde
tinha mais gente. Outras pessoas disseram que não viram ninguém com Sete, mas
isso porque simplesmente o olharam muito rápido. “O pânico foi muito grande. O
lugar era um grande retângulo, de um lado um balcão comprido, do outro lado, o
espaço total com o povo. Não tinha pra onde correr. Ele estava bem diante da
saída, de boa, atirando à vontade”, me contou Guilherme por telefone. Ele disse
que foi atingido e logo desmaiou não vendo muitos detalhes. Quando confrontado
sobre cúmplices anões, Sete couros deu risada. O delegado achou que as
histórias exageradas eram fruto de embriaguez, pânico e boatos. O bandido foi
devidamente condenado. Ficou preso por quatro anos até fugir com seis colegas.
Cinco deles foram recapturados, um morreu e apenas Sete couros continua
foragido. Há quem fale que ele simplesmente foi morto em segredo ou vive
escondido, porém o que mais se escuta é que sua fuga foi um favorecimento
demoníaco e que ele está por aí cometendo seus crimes.terça-feira, 21 de maio de 2019
SETE COUROS parte 4 (Contos de terror)
Manuel
Gomes, o Sete Couros entrou em profunda decadência após à morte da sua mãe. Não
que isso
tenha tido alguma influência maior em sua vida. Como foi dito, e
devidamente confirmado, o bandido não se importava com a mãe biológica. Sua
única fonte de afeição na vida fora a avó. Certamente foi apenas coincidência
que tivesse entrado numa espiral decadente pouco depois da morte daquela que o
pôs no mundo. O homem não teve mais êxitos nos seus crimes e passou a andar com
uma aparência miserável pelo bairro. Pedia bebida e cigarros a quem encontrava.
Nesse tempo, um jovem malandro de nome Isaías, o espancou. A humilhação de Sete
couros ficou ainda mais completa quando foi preso e ficou mais de um ano na
prisão. Curiosamente saiu de lá fortalecido. Fez um dos poucos grandes crimes
de sua vida nesse tempo. Auxiliou um grupo de assaltantes, ganhou dinheiro e
voltou ao bairro exibindo-se e, ao contrário de antes, pagando bebidas e por
vezes acendendo cigarros e baseados para logo entregar aos convivas que com ele
estavam. Encontrou Isaias nesse tempo e cometeu um dos crimes mais comentados.
Morando em outra casa, Sete couros, encarcerou o inimigo, o torturou-o por
semanas, o assassinou e depois cortou o homem em vários pedaços. É incrível
saber que Sete couros nunca foi punido por isso. Quando o crime foi descoberto
– os restos do corpo de Isaías foram achados numa lixeira – o assassino fugiu.
Ficou meses foragido e quando voltou, foi premiado por uma polícia indiferente
a crimes cometidos contra bandidos sem importância do naipe de Isaías. Obtive detalhes
sórdidos do crime e estes me foram repetidos exaustivamente. Disseram que Sete
couros teria sodomizado sua vítima inúmeras vezes. Também o queimou, cortou sua
pele e o espancou severamente. Tudo isso enquanto Isaías esteve acorrentado no
fundo do seu quintal. Por vezes pediu socorro, mas a vizinhança temendo
represálias, ficava em silêncio, além do que, não podia ter certeza daqueles
pedidos de ajuda. Em algumas ocasiões, me disseram, Sete couros o tratou
melhor, alimentando-o bem e tratando seus ferimentos. Tudo isso para que
melhorasse e vivesse por mais tempo, suportando novas torturas. O assassino
chegou a contratar André, um jovem malandro na época que tinha uma máquina
fotográfica. Convenceu o rapaz a registar imagens dele tendo relações forçadas
com Isaías. Consegui conversar com esse fotógrafo, agora um senhor respeitável,
longe desse submundo há vários anos. Ele me confirmou as monstruosidades de
Sete couros, inclusive esse episódio em que foi convidado a fotografar tais
sevícias. “Pior era que eu não sabia que aquilo era forçado”, falou o homem
sentado na varanda de sua casa com o ar de admiração de quem devidamente
recorda um fato absurdo do passado. “Manuel era um cara doido, fazia coisa com
homem, mulher, até bicho... Numa ocasião, um carnaval, vestido de mulher, me
pediu para tirar fotos enquanto beijava um moleque na boca. Isaías parecia de
boa enquanto Manuel... Bem, você sabe...”, contou André. O homem falou que
nunca revelou as fotos. Disse que teria vergonha de levar àquilo a um estúdio
fotográfico. Enrolou Sete couros até ele esquecer disso. E se desfez do filme.
Quando soube do crime, ficou ainda mais aliviado por não revelar as fotografias.
André também disse que ficou muito mais tranquilo quando reencontrou Sete
couros anos depois e ele teria dito: “Ainda bem que ocê não revelou aquelas
fotos!” Como sabia que o outro nunca o fizera, é um mistério. Foi nesse tempo
que André também se afastou daquele mundo de crime e violência. “Eu era jovem e
idiota, achava aquele mundo fantástico, mas, graças a Deus, caí na real”,
falou. Foi estudar, aprender mais sobre fotografia, tornando-se um excelente
profissional. Casou e se mudou do bairro. Depois do episódio com Isaías, Sete
couros ficou vivendo discretamente, chamando pouca atenção aqui e ali com suas
contravenções. Mas não demorou a chamar a atenção e chocar por outros atos ainda piores
do que fizera.
domingo, 19 de maio de 2019
SETE COUROS parte 3 (Contos de terror)
Sempre
movido por uma vida de disputas, crimes e, irado com a morte da avó, Sete couros
partiu em
busca de vingança. Nesse caminho matou dois homens. Alguns discordam
desse número informando que foram mais. Só encontrei comprovação de dois: um
suposto parceiro de crimes de Fernando, o assassino de sua avó, o outro, um
sujeito que se interpôs alegando a inocência de Fernando e desafiando Sete
couros. O homem ficou famoso na história do assassino por ter dito inúmeras
vezes: “Ele pode vir, pensa que eu sou uma garotinha que ele faz o que quer?” O
embate entre os dois foi inevitável. Sete couros desarmou o homem usando os
punhos, tomou-lhe a faca e o degolou. Sua fama de valente e forte se espalhou
ainda mais. A polícia já andava em seu encalço, enquanto Fernando se escondia
dele. O matador se deparou com o ex parceiro do assassino da avó. O amigo de
Fernando, temeroso, alegou que não tinha nada a ver com o crime. Dizem que Sete
couros teria dito: “sei disso, vou te matar só porque se meteu na história
falando besteira!” E disparou contra o homem desarmado. É provável que esse ímpeto
de Manuel, aumentou na boca do povo o número de crimes enquanto caçava
Fernando... Talvez não. O fato de eu não encontrar evidências de outras mortes
não invalida a possibilidade dos crimes terem acontecido. Algumas vezes eu me
deparei com a indiferença ou indisposição de policiais no que se referia a
revelar os arquivos de Sete couros. Some-se a isso a impunidade dos obscuros
anos oitenta. De qualquer modo, consegui apurar que o homem continuou sua caçada,
entretanto se deparou com um profundo desapontamento quando Fernando foi preso.
Dizem que Sete couros cogitou até mesmo se deixar apanhar para encontrar o
inimigo na prisão e ir à forra, mas desistiu quando soube que isso seria
complicado demais. “Um dia as pedras se encontram”, disse ele. Ele nutria
profunda esperança de encontrar o desafeto. porém se deparou com notícia de que
Fernando fora morto na cadeia por causa de um maço de cigarros. Sua ira aumento
muito nesse tempo. Saiu cometendo crimes à esmo sem o cuidado e a frieza que
tivera antes. Foi preso duas vezes, mas fugiu de ambas delegacias. Às vezes era
visto andando pelo bairro falando sozinho. Interpelava conhecidos e apontava
para supostos demônios que dizia segui-lo. Alguns especulam que começava a
manifestar algum problema mental nessa época, outros que ele realmente via
essas coisas devido às maldições que carregava. O interessante é que Sete
couros nunca foi diagnosticado com qualquer problema mental. Mesmo tendo
passado por delegacias e instituições a vida toda. Além do mais agia
normalmente nas mais diversas ocasiões. Uma pessoa me disse que eu ele
simplesmente acreditava nas suas visões e nunca agira descontrolado do ponto de
vista mental. Nenhum de seus crimes fora praticado em caráter delirante. Um dia
a polícia invadiu a residência de Sete couros, a casa onde se estabelecera
depois de deixar a favela, e encontrou restos mortais de duas pessoas. Passou
muito tempo foragido, regressando ao bairro apenas oito meses depois. Voltou a
morar na favela, no barraco que fora da avó. Nesse tempo sua mãe faleceu, mas
ele tratou o acontecido com indiferença. Quando recebeu a notícia da morte da
genitora, limitou-se a balançar a cabeça e dizer: “nunca foi minha mãe de
verdade”. O pai há muito tempo tinha ido embora e ele andava sozinho no mundo,
irascível e compenetrado nas suas ações.quarta-feira, 15 de maio de 2019
SETE COUROS Parte 2 (Conto de terror)
Manuel nasceu em 1961 em São Paulo, mas sua família o trouxe ainda bebê para Fortaleza. A mãe o
entregou aos cuidados da avó paterna, visitando-o esporadicamente. Sofreu mais influência do pai alcoólatra violento e dos tios igualmente terríveis. Dizem que foi abusado por um primo dos doze aos quinze anos. E apesar de Sete couros se declarar bissexual em certa altura da vida, não gostava de ter relações com o primo e isso provavelmente mexeu com sua cabeça. O primo morreu afogado num banho de rio, num passeio ao interior. Ocasião em que Manuel estava presente. Várias suposições de que ele afogou o primo surgiram. Inclusive as testemunhas que até hoje insistem em dizer que viram Manuel sendo amável com o primo pela primeira vez, tentando convencê-lo a ir nadarem numa parte mais funda. Como era um excelente nadador, teria usado suas habilidades para sobrepujar o outro que não conseguia enfrentar em outra situação. Aos dezesseis anos, movido pelo vício em maconha, começou a roubar. Também descobriram que matava bichos e lhes curtia o couro. Ao serem descoberto sete peles de gatos que guardava sob a cama, veio a sua alcunha. Foi também nessa época que cometeu seu primeiro assassinato comprovado. Ficou até os 18 anos na FEBEM. Saiu de lá e continuou a vida de crime como se nada tivesse acontecido. Praticava pequenos roubos apenas para as pequenas despesas e vícios. Aos dezenove anos foi acusado de praticar abusos sexuais com a irmã de uma mulher com quem tinha relações. Acabou ficando livre por conseguir convencer a vítima a mudar o depoimento. Depois disso não parou mais. Sempre surgiam denúncias de que tinha atacado moças e rapazinhos que viviam em situação de risco na favela onde morava, ou então em outros locais onde frequentavam outros desamparados como sinais de trânsito, esquinas, bares e zonas de prostituição. Apesar de beber e fumar maconha, Sete couros nunca foi adepto de drogas pesadas ou era visto demasiado embriagado. Apesar de violento, a maior parte do tempo vivia tranquilo vadiando pelas esquinas, à caça de potenciais vítimas. Houve uma época que chamou a atenção por levar sempre a tiracolo uma bolsa de tecido com um velho exemplar do Livro de São Cipriano. Acreditava extrair do suposto livro de feitiçaria, truques mágicos para se dar bem na vida. Curiosamente, foi nessa época que viveu de maneira mais próspera, chegando a sair do barraco em que vivera a vida toda para morar numa casa razoável. Foi nesse tempo que eu o via com frequência no bar que havia na rua da minha avó. Recordo bem que, como os meninos e meninas do bairro, eu era advertido a ter cuidado com Sete couros, pois ele atacava qualquer um. Ouvia também falar de suas brigas e uma ocasião em que esfaqueara dois homens numa disputa. Na minha pesquisa, descobri que ele tinha matado dois irmãos que lhe ameaçaram. Passou algum tempo foragido, mas depois regressou ao bairro e continuou sua vida normalmente. Nesse tempo, a avó de Sete couros, a única pessoa de quem recebera certo afeto, fora encontrada morta dentro de casa. A mulher de mais de oitenta anos fora morta e estuprada na própria residência. Isso com certeza perturbou ainda mais a cabeça de Sete couros, um homem que não podia compreender um mundo que não fosse constituído de ódios inexplicáveis e violência.
entregou aos cuidados da avó paterna, visitando-o esporadicamente. Sofreu mais influência do pai alcoólatra violento e dos tios igualmente terríveis. Dizem que foi abusado por um primo dos doze aos quinze anos. E apesar de Sete couros se declarar bissexual em certa altura da vida, não gostava de ter relações com o primo e isso provavelmente mexeu com sua cabeça. O primo morreu afogado num banho de rio, num passeio ao interior. Ocasião em que Manuel estava presente. Várias suposições de que ele afogou o primo surgiram. Inclusive as testemunhas que até hoje insistem em dizer que viram Manuel sendo amável com o primo pela primeira vez, tentando convencê-lo a ir nadarem numa parte mais funda. Como era um excelente nadador, teria usado suas habilidades para sobrepujar o outro que não conseguia enfrentar em outra situação. Aos dezesseis anos, movido pelo vício em maconha, começou a roubar. Também descobriram que matava bichos e lhes curtia o couro. Ao serem descoberto sete peles de gatos que guardava sob a cama, veio a sua alcunha. Foi também nessa época que cometeu seu primeiro assassinato comprovado. Ficou até os 18 anos na FEBEM. Saiu de lá e continuou a vida de crime como se nada tivesse acontecido. Praticava pequenos roubos apenas para as pequenas despesas e vícios. Aos dezenove anos foi acusado de praticar abusos sexuais com a irmã de uma mulher com quem tinha relações. Acabou ficando livre por conseguir convencer a vítima a mudar o depoimento. Depois disso não parou mais. Sempre surgiam denúncias de que tinha atacado moças e rapazinhos que viviam em situação de risco na favela onde morava, ou então em outros locais onde frequentavam outros desamparados como sinais de trânsito, esquinas, bares e zonas de prostituição. Apesar de beber e fumar maconha, Sete couros nunca foi adepto de drogas pesadas ou era visto demasiado embriagado. Apesar de violento, a maior parte do tempo vivia tranquilo vadiando pelas esquinas, à caça de potenciais vítimas. Houve uma época que chamou a atenção por levar sempre a tiracolo uma bolsa de tecido com um velho exemplar do Livro de São Cipriano. Acreditava extrair do suposto livro de feitiçaria, truques mágicos para se dar bem na vida. Curiosamente, foi nessa época que viveu de maneira mais próspera, chegando a sair do barraco em que vivera a vida toda para morar numa casa razoável. Foi nesse tempo que eu o via com frequência no bar que havia na rua da minha avó. Recordo bem que, como os meninos e meninas do bairro, eu era advertido a ter cuidado com Sete couros, pois ele atacava qualquer um. Ouvia também falar de suas brigas e uma ocasião em que esfaqueara dois homens numa disputa. Na minha pesquisa, descobri que ele tinha matado dois irmãos que lhe ameaçaram. Passou algum tempo foragido, mas depois regressou ao bairro e continuou sua vida normalmente. Nesse tempo, a avó de Sete couros, a única pessoa de quem recebera certo afeto, fora encontrada morta dentro de casa. A mulher de mais de oitenta anos fora morta e estuprada na própria residência. Isso com certeza perturbou ainda mais a cabeça de Sete couros, um homem que não podia compreender um mundo que não fosse constituído de ódios inexplicáveis e violência.
domingo, 12 de maio de 2019
SETE COUROS (Conto de terror)
As
histórias em torno dele eram tão prolíferas que eram difíceis de acompanhar. E
isso me
surpreendeu grandemente quando resolvi registrar a história de Manuel
Gomes Ferreira, o Sete couros. Achei que iria seguir uma linha reta a partir do
relato dos meus parentes mais velhos, mas essa vereda logo se mostrou cheia de
ramificações. Tão logo voltei ao meu antigo bairro com o intuito de escrever
sobre o matador, não foram poucas as pessoas que se ofereceram para dar seus
depoimentos. Minha avó, tios, tias, assim como primos ainda vivem no lugar. Cada
um deles me falou sobre Sete couros me ajudando a criar a espinha dorsal da
narrativa. E então, logo que souberam do meu trabalho, a quantidade de pessoas
que vieram me ajudar só aumentou. Eu tinha me tornado uma subcelebridade por
causa do meu sucesso em venda de livros de histórias assustadoras, além de ter
escrito uma série de sucesso para uma plataforma de streaming. Nada que me fizesse
ser perseguido por multidões, mas no meu bairro, apontado orgulhosamente por
meus parentes, eu experimentei os louros da fama. Mas, essa história não é sobre
mim, nem sobre minha ficção. Eu estava escrevendo sobre um maníaco que ficara
famoso nos anos oitenta e vivia um impasse em relação a obra. Não era uma
biografia – eu não sei escrever uma – e nem acho que uma sobre um matador em
série de terras brasileiras, violador e ladrão barato, fazia sentido. Enfim,
decidi fazer o registro e escrever o máximo possível sobre Sete couros numa
espécie de memória, talvez um vasto estudo sobre um assassino de verdade que eu
pudera conhecer pessoalmente e que me fizeram fascinado pelo macabro e obscuro.
Pessoalmente, digo de passagem, num nível bem distante, pois o conhecimento
sobre ele se limitou a vê-lo tomando aguardente no bar da esquina e ouvir o que
falavam dele. Aproveito para registrar que os psicopatas descritos em minhas
histórias são ligeiramente baseados na figura de Sete couros. Não lhes dei
maiores características do matador que eu conheci, pois sempre tentei preservar
sua imagem. Falando assim, fica estranho que alguém tente preservar um matador
sanguinário. Mas a explicação é simples. Meus matadores da ficção tiveram um ou
outro traço de Manuel Gomes Ferreira porque eu sabia que um dia escreveria
sobre ele. Além do mais seria um insulto à minha criatividade de escritor
roubar totalmente a vida de um ser humano real – por pior que este seja –, e quando
minha narrativa sobre o assassino Sete couros surgisse, nada seria novo pois eu
já o teria retratado numa suposta ficção. Sem mais explicações – eu não tenho
mais nenhuma – esta é a história de Sete Couros.quarta-feira, 8 de maio de 2019
DE OUTROS MUNDOS (Conto de terror)
Era
o mais puro e perfeito horror, pensou ele, os olhos em movimento,
esquadrinhando a cena. Estava
na estrada já há alguns meses... Em busca de iluminação? Não. Para viver uma vida mais plena, desapegado, new beatnik? Nem tanto assim. Para que então? Por simples prazer. Sem maiores explicações transcendentais. Só gostava e pronto. O complicado era que não esperava se deparar diante do horror. Sim, sabia das carências que teria que encarar. Fome, sede frio, relento, cansaço, discriminações e todas as diversas privações de que a carne é herdeira, parafraseando Shakespeare. Se preparara até para os horrores da violência dos caminhos, mas não aquilo. Tinha se juntado a um grupo, por vezes fazia isso quando encontrava outros andarilhos trilhando caminhos comuns. Este era bem voltado para práticas esotéricas, religiosas, faziam rituais no caminho, mas ele não se importava, apenas olhava curioso. Mas foi então que, naquela estrada, tinha ido se abrigar nas ruínas da velha casa. Estava frio, fizeram uma fogueira, se reuniram ao redor. As garotas resolveram fazer mais um ritual, invocação. Ele mais uma vez se limitou a olhar. Ficou observando, esse era esquisito, tinha sangue, juras, um misto doido retirado de livros que supostamente continham segredos de religiões pagãs, textos da internet, não se sabe como, selecionados em meio a tantas bobagens que bem sabemos que existe na rede. Então fizera a coisa com sangue e fogo. Aproveitando a fogueira que servia mesmo para aquecer, gostas de sangue dos participantes... Pretendiam abrir um caminho para a deusa antiga que ele não lembrou o nome nem antes e nem depois. A coisa começou a ficar estranha, um frio insuportável mesmo diante do fogaréu. Um vento e urros, tudo acontecendo tão rápido como num filme de terror. Então todos ouviram o estalar do que pareciam ser ossos quebrados. Silêncio, apenas o frio tomando conta do ambiente que antes fora uma sala de estar. Por um momento ele pensou que se limitaria aquilo, coisa interessante de contar e ouvir no dia seguinte... Mas aí, as criaturas surgiram das sombras. Das grandes sombras do interior da residência e até das pequenas e trêmulas projetadas pelas pessoas ao redor. Eram criaturas com braços e pernas enormes, semelhantes a aranhas, algumas escuras, outras diáfanas, outras ainda com peles e texturas animalescas como repteis e mamíferos. Um fedor indescritível veio com elas. Adentraram ao recinto desembestadas, gritando e urrando, derrubando as bagagens e apetrechos. As pessoas tocadas por eles ficaram arranhadas, cheias de hematomas no rosto, braços e pernas. As tais coisas se movimentaram ao redor, como num redemoinho endiabrado de bestas travessas. Em todo o momento ele não acreditava nos próprios olhos, naquele pânico, naquelas aparições, nos gritos misturados de gente e demônios, ou que fosse aquilo. Não estava sonhando, não estava drogado, muito menos louco. Algumas pessoas tentaram fugir, mas foram violentamente derrubadas no chão. Estava claro que aquelas entidades exigiam a presença de todos. Ficou claro que vieram para causar um pânico de três minutos e foi o que fizeram. Durante todo esse tempo se manifestaram no ambiente, rolaram no chão, entre as pessoas, gritando a atingindo tudo. No fim, pareceu para ele que era uma coisa apenas jocosa, um recado de que muito pior podia ter sido feito. Não era uma boa ideia manter contato com o outro mundo de maneira leviana, o recado estava dado. Da mesma maneira que vieram, os monstros sumiram, a temperatura voltou ao normal. Do caos só ficaram as pessoas chorando, mãos no rosto, estarrecidas em seus lugares. E ele, lívido, petrificado, olhando ao redor, consciente de que estivera diante do mais puro e imprevisível terror.
na estrada já há alguns meses... Em busca de iluminação? Não. Para viver uma vida mais plena, desapegado, new beatnik? Nem tanto assim. Para que então? Por simples prazer. Sem maiores explicações transcendentais. Só gostava e pronto. O complicado era que não esperava se deparar diante do horror. Sim, sabia das carências que teria que encarar. Fome, sede frio, relento, cansaço, discriminações e todas as diversas privações de que a carne é herdeira, parafraseando Shakespeare. Se preparara até para os horrores da violência dos caminhos, mas não aquilo. Tinha se juntado a um grupo, por vezes fazia isso quando encontrava outros andarilhos trilhando caminhos comuns. Este era bem voltado para práticas esotéricas, religiosas, faziam rituais no caminho, mas ele não se importava, apenas olhava curioso. Mas foi então que, naquela estrada, tinha ido se abrigar nas ruínas da velha casa. Estava frio, fizeram uma fogueira, se reuniram ao redor. As garotas resolveram fazer mais um ritual, invocação. Ele mais uma vez se limitou a olhar. Ficou observando, esse era esquisito, tinha sangue, juras, um misto doido retirado de livros que supostamente continham segredos de religiões pagãs, textos da internet, não se sabe como, selecionados em meio a tantas bobagens que bem sabemos que existe na rede. Então fizera a coisa com sangue e fogo. Aproveitando a fogueira que servia mesmo para aquecer, gostas de sangue dos participantes... Pretendiam abrir um caminho para a deusa antiga que ele não lembrou o nome nem antes e nem depois. A coisa começou a ficar estranha, um frio insuportável mesmo diante do fogaréu. Um vento e urros, tudo acontecendo tão rápido como num filme de terror. Então todos ouviram o estalar do que pareciam ser ossos quebrados. Silêncio, apenas o frio tomando conta do ambiente que antes fora uma sala de estar. Por um momento ele pensou que se limitaria aquilo, coisa interessante de contar e ouvir no dia seguinte... Mas aí, as criaturas surgiram das sombras. Das grandes sombras do interior da residência e até das pequenas e trêmulas projetadas pelas pessoas ao redor. Eram criaturas com braços e pernas enormes, semelhantes a aranhas, algumas escuras, outras diáfanas, outras ainda com peles e texturas animalescas como repteis e mamíferos. Um fedor indescritível veio com elas. Adentraram ao recinto desembestadas, gritando e urrando, derrubando as bagagens e apetrechos. As pessoas tocadas por eles ficaram arranhadas, cheias de hematomas no rosto, braços e pernas. As tais coisas se movimentaram ao redor, como num redemoinho endiabrado de bestas travessas. Em todo o momento ele não acreditava nos próprios olhos, naquele pânico, naquelas aparições, nos gritos misturados de gente e demônios, ou que fosse aquilo. Não estava sonhando, não estava drogado, muito menos louco. Algumas pessoas tentaram fugir, mas foram violentamente derrubadas no chão. Estava claro que aquelas entidades exigiam a presença de todos. Ficou claro que vieram para causar um pânico de três minutos e foi o que fizeram. Durante todo esse tempo se manifestaram no ambiente, rolaram no chão, entre as pessoas, gritando a atingindo tudo. No fim, pareceu para ele que era uma coisa apenas jocosa, um recado de que muito pior podia ter sido feito. Não era uma boa ideia manter contato com o outro mundo de maneira leviana, o recado estava dado. Da mesma maneira que vieram, os monstros sumiram, a temperatura voltou ao normal. Do caos só ficaram as pessoas chorando, mãos no rosto, estarrecidas em seus lugares. E ele, lívido, petrificado, olhando ao redor, consciente de que estivera diante do mais puro e imprevisível terror.
sexta-feira, 3 de maio de 2019
OS SENHORES DO MAL Parte 4. (Conto de terror)
Recordo
ter dado uma longa olhada no quadro de Irineu Albertino. Apesar de ser uma
imagem
estática, eu não saber o quanto a pintura era fidedigna ao retratado, eu
achava que podia ver uma aura de ódio por trás daqueles olhos. Talvez eu
estivesse impressionado ou adivinhasse o que viria. Não dormi naquela noite.
Fiquei recluso, totalmente alheio às conversas animadas dos meus amigos que,
naquele momento nem sequer recordavam as impressionantes manifestações que
havíamos presenciados juntos. Fui pro meu canto experimentando uma atroz
solidão. Não dormi nenhum instante, passando as horas ouvindo música e lendo no
celular um e-book de H.P. Lovecraft. Devia ser de madrugada quando as coisas
começaram. Primeiramente os barulhos, depois aquele vulto diante de mim. Nem
pensei, levantei e saí correndo dali, mas ao chegar no corredor, o mundo, ou
pelo menos minha realidade se transformou. O ambiente que antes estava numa
penumbra onde os objetos podiam ser razoavelmente reconhecidos se tornou claro
como a luz do dia. Procurei meus amigos em seus respectivos quartos, mas não os
achei. Percebi que os móveis eram outros. Fui até a sala e me deparei com o
patriarca em pessoa. Irineu Albertino estava em pé na sala. Agora sim, ao invés
de um vulto, um espectro indefinido, ali estava uma aparição devidamente identificável.
O sr. Albertino sentou-se numa das poltronas da sala e logo eu vi outros homens
bem vestidos com trajes antigos. Iniciava-se uma reunião e eu era uma
testemunha invisível para aqueles homens. Aproximei-me para ouvir o que diziam.
Percebi que falavam uma língua estrangeira... Alemão? Sim, era o que parecia.
Em alguns momentos alternavam para o português e riam. Sabia que não estava
sonhando, mas esperava a qualquer momento que algo me tirasse daquela dimensão
e eu voltasse para meu presente com meus amigos. Houve um momento em que um
jovem negro de uns vinte anos de idade, usando um largo paletó, entrou na sala,
fez uma mesura e começou a distribuir charutos. Os homens comentaram
satisfeitos sobre a qualidade dos presentes e agradeceram ao anfitrião, mas de
repente o jovem, que certamente era um escravo, sacou uma faca e atacou um
daqueles homens na garganta. Outros negros surgiram de todos os lados com
facões, pedaços de madeira e tochas. Iniciou-se uma matança e aquilo começou a
me causar um extremo mal estrar. Por mais que estivesse vendo uma vingança
perpetrada em esferas do além da morte por causa de maus tratos, aquilo era
extremamente realista e perturbador. Recuei, soltando um gemido de repulsa e
isso chamou a atenção dos matadores. Um deles se aproximou de mim, a ponto de
eu sentir o calor no rosto da tocha que empunhava. Sem falar nada me entregou o
fogo. Os outros se posicionaram e começaram a pôr fogo em tudo ao redor: cadáveres,
móveis, cortinas, livros e carpetes. Experimentei um ataque de euforia e
comecei a andar pelo recinto colocando fogo, auxiliando os revoltosos. Um deles
me encarou sorrindo, ri de volta num reconhecimento de quem tem como inimigo
comum a maldade, o preconceito e a desumanidade de considerar os semelhantes
inferiores. Então nesse momento fui arrebatado por braços fortes. Era Pedro
junto com Mauro me tomaram a tocha. Em seguida eles trataram de apagar o único
móvel que pegava fogo na sala. As garotas espantadas olhando para mim e ao
redor. A casa de novo estava como antes. Ali somente nosso grupo, poucos móveis.
O mais antigo deles, diante de mim, preto e fumegante. Meus amigos perguntaram
se eu estava louco. Contei-lhes tudo que vira. Imediatamente concordaram em
partir, mas não sem antes contatarem o caseiro para pagar o prejuízo. Partimos
por volta de meio dia. E eu apenas fiquei lamentando que os escravos, em vida,
não tivessem de fato cometido aquela revolta. Bem, pelo menos eles estavam no
além acenando para nós, mostrando o que devia ser feito!quarta-feira, 1 de maio de 2019
OS SENHORES DO MAL Parte 3 (Conto de terror)
Ficamos boa parte da manhã conversando sobre a possibilidade de irmos embora ou ficar o tempo
combinado. Eu e Pedro estávamos inclinados a partir, eu mais que ele. Os outros insistiam que era melhor ficar, até mesmo examinar aquilo mais de perto. Eles diziam compreender que eu era o mais assustado, pois vira alguma coisa, mas que eu ficasse despreocupado, iriam me proteger. Nunca tinha ficado desconfortável no meio deles, dos dois casais, um único solteiro do grupo cujo o fim do namoro meses antes me deixara arrasado e choroso nos ombros deles. Mas agora, único solteiro, gay, abandonado depois de um relacionamento de dois anos e terrivelmente assustado, me senti muito mal. Parecia que me tornara o peso para o grupo. Foi então que, sobretudo para não parecer covarde e estraga prazeres, cedi aos apelos e ficamos. Passamos a manhã preparando o almoço, bebendo e experimentando mais um pouco de erva. Andamos pela casa e ao redor dela. Priscila e Mauro chamaram nossas atenções ao encontrar alguns tijolos marcados nos fundos da casa. Ali, estavam os famigerados tijolos com suásticas em uma parte que não tinha reboco. Eu examinei de perto e pelo relevo e textura dava pra acreditar que eram reais. Eu não podia afirmar aquilo cem por cento, mas era algo bem plausível. Adiamos o passeio da tarde – indicado pelo locatário da casa - e ficamos conversando, tecendo teorias sobre as assombrações da noite passada. O que mais nos deixava transtornados era o fato de ninguém ter mencionado atividades sobrenaturais. Havíamos tanto ouvido falar da propriedade, boatos exagerados, mas estranhamente – e eu acho que adorariam fazê-lo – ninguém falou de assombrações. Pensamos em contatar o caseiro, mas logo desistimos disso. Meus amigos e eu estávamos atrás da residência, ao ar livre, ocupando mesas e cadeiras próximas a uma piscina rústica. Após os limites da propriedade, a imensidão de matas exuberantes. Por ali havia uma trilha curta que conduzia a um rio e cachoeira. Observando aquela paisagem, fui tomado de uma tristeza imensa. Apesar de toda a beleza do lugar, não conseguia deixar de imaginar como aquilo tudo soava ainda mais pesaroso para as pessoas que viviam ali trabalhando num regime de escravidão. Observar aquela exuberância vivendo uma vida miserável devia constituir um aditivo de tortura. O céu foi mudando em cores com o passar das horas. Meus amigos se divertiam tomando banho e bebendo cerveja. Enquanto isso eu fumava, tomava algumas doses de vinho e observava. Começava a me sentir como um personagem de uma das histórias de Edgar Alan Poe. Um sujeito incauto diante de uma manifestação ameaçadora e incompreensível para mim. A noite estava vindo e isso me deixava nervoso. Pensei até em beber mais para que a embriagues me fizesse dormir. Quando acordasse, já seria o dia de nossa partida. Mas achei que isso não constituía uma boa ideia. Era melhor ficar acordado e se possível perto dos meus amigos apesar de tudo. Mauro sentou-se ao meu lado todo molhado e me perguntou esse eu estava bem. Antes que eu respondesse ele começou a comentar sobre o frio que estava começando a sentir. Os outros vieram e ficamos falando novamente sobre a casa. Disse-lhes que tinha imaginado que tudo que todas as manifestações da noite passada eram o resultado das inúmeras vidas perdidas naquele lugar. Muito provavelmente as almas das pessoas escravizadas rondavam a fazenda. Não era assim que as propriedades ficavam assombradas? Mauro falou com ar de superioridade que a maioria das manifestações que os demais consideram sobrenaturais podem ser explicados pela ciência. Pedro informou que não dava muita bola para a parapsicologia e a conversa se tornou uma daqueles debates complexos do tempo de faculdade com o direito a alusão de livros, teorias e filmes. Acho que somente eu estava preocupado de verdade enquanto erguia os olhos ao redor experimentando terrores absurdos.
combinado. Eu e Pedro estávamos inclinados a partir, eu mais que ele. Os outros insistiam que era melhor ficar, até mesmo examinar aquilo mais de perto. Eles diziam compreender que eu era o mais assustado, pois vira alguma coisa, mas que eu ficasse despreocupado, iriam me proteger. Nunca tinha ficado desconfortável no meio deles, dos dois casais, um único solteiro do grupo cujo o fim do namoro meses antes me deixara arrasado e choroso nos ombros deles. Mas agora, único solteiro, gay, abandonado depois de um relacionamento de dois anos e terrivelmente assustado, me senti muito mal. Parecia que me tornara o peso para o grupo. Foi então que, sobretudo para não parecer covarde e estraga prazeres, cedi aos apelos e ficamos. Passamos a manhã preparando o almoço, bebendo e experimentando mais um pouco de erva. Andamos pela casa e ao redor dela. Priscila e Mauro chamaram nossas atenções ao encontrar alguns tijolos marcados nos fundos da casa. Ali, estavam os famigerados tijolos com suásticas em uma parte que não tinha reboco. Eu examinei de perto e pelo relevo e textura dava pra acreditar que eram reais. Eu não podia afirmar aquilo cem por cento, mas era algo bem plausível. Adiamos o passeio da tarde – indicado pelo locatário da casa - e ficamos conversando, tecendo teorias sobre as assombrações da noite passada. O que mais nos deixava transtornados era o fato de ninguém ter mencionado atividades sobrenaturais. Havíamos tanto ouvido falar da propriedade, boatos exagerados, mas estranhamente – e eu acho que adorariam fazê-lo – ninguém falou de assombrações. Pensamos em contatar o caseiro, mas logo desistimos disso. Meus amigos e eu estávamos atrás da residência, ao ar livre, ocupando mesas e cadeiras próximas a uma piscina rústica. Após os limites da propriedade, a imensidão de matas exuberantes. Por ali havia uma trilha curta que conduzia a um rio e cachoeira. Observando aquela paisagem, fui tomado de uma tristeza imensa. Apesar de toda a beleza do lugar, não conseguia deixar de imaginar como aquilo tudo soava ainda mais pesaroso para as pessoas que viviam ali trabalhando num regime de escravidão. Observar aquela exuberância vivendo uma vida miserável devia constituir um aditivo de tortura. O céu foi mudando em cores com o passar das horas. Meus amigos se divertiam tomando banho e bebendo cerveja. Enquanto isso eu fumava, tomava algumas doses de vinho e observava. Começava a me sentir como um personagem de uma das histórias de Edgar Alan Poe. Um sujeito incauto diante de uma manifestação ameaçadora e incompreensível para mim. A noite estava vindo e isso me deixava nervoso. Pensei até em beber mais para que a embriagues me fizesse dormir. Quando acordasse, já seria o dia de nossa partida. Mas achei que isso não constituía uma boa ideia. Era melhor ficar acordado e se possível perto dos meus amigos apesar de tudo. Mauro sentou-se ao meu lado todo molhado e me perguntou esse eu estava bem. Antes que eu respondesse ele começou a comentar sobre o frio que estava começando a sentir. Os outros vieram e ficamos falando novamente sobre a casa. Disse-lhes que tinha imaginado que tudo que todas as manifestações da noite passada eram o resultado das inúmeras vidas perdidas naquele lugar. Muito provavelmente as almas das pessoas escravizadas rondavam a fazenda. Não era assim que as propriedades ficavam assombradas? Mauro falou com ar de superioridade que a maioria das manifestações que os demais consideram sobrenaturais podem ser explicados pela ciência. Pedro informou que não dava muita bola para a parapsicologia e a conversa se tornou uma daqueles debates complexos do tempo de faculdade com o direito a alusão de livros, teorias e filmes. Acho que somente eu estava preocupado de verdade enquanto erguia os olhos ao redor experimentando terrores absurdos.
OS SENHORES DO MAL Parte 2 (Contos de terror)
Foi só o vinho
combinado à erva surtir efeito, que todo mundo resolveu ir dormir. Pretendíamos
aproveitar o outro dia, então fomos descansar. Fomos pra cama após um jantar improvisado com conservas, queijo, presunto e pães. Lembro que deitei e demorei a dormir pensando nas inúmeras coisas que tinham acontecido naquela casa. Quantas vidas, sonhos, pompa e circunstância não teriam tido vez naquele lugar! Pensei no célebre Monteiro Lobato, amigo da família, que diziam ter se hospedado ali. Não sabia se isso era fato, mas recordava bem as polêmicas que diziam que o autor de Sítio do pica pau amarelo era um entusiasta da eugenia e um racista empedernido. Bem, notícias falsas não eram um privilégio exclusivo de nosso tempo, assim como o preconceito. Dormi e sonhei com paisagens campestres e grupos com chapéus pontudos em imagens de redes sociais. Acordei no meio da noite com barulhos no quarto. Pensei que Pedro ou Mauro estivessem ali fazendo alguma brincadeira. Chamei por um e outro, mas não obtive resposta. A penumbra no quarto não era total, de modo que eu podia ver as telhas e as divisões claras entre elas, naquele teto alto. Estava me distraindo quando novas perturbações me chamaram a atenção. Em dado momento vi diante de mim um vulto escuro de forma humana. “Pedro, Mauro? Chamei, mas não houve resposta. O vulto se ergueu sobre mim e foi flutuando até o teto. O pavor que tomou conta de mim nesse momento foi uma das coisas mais reais que já experimentei na vida. É um fato tão absoluto em minha existência que jamais cogitei estar sonhando ou em qualquer outro estado de consciência indefinida. Meu coração acelerou e um calafrio me dominou. Aquele espectro ficou acima de mim um tempo, se contorceu, emitiu uma espécie de urro e desapareceu. Senti me paralisado de medo e comecei a chamar pelos amigos. Ouvi quando Elen disse: “É o Junior...” Em seguida Pedro falou comigo. Levantei, tateei em busca do celular. Liguei a lanterna do aparelho e fui trôpego até os amigos. Encontrei-os no quarto contiguo ao meu. Pedro disse ter ouvido algo. Eu disse: “Eu vi algo!” Contei para eles o que ocorrera. Chamamos por Mauro e Priscila. Não houve resposta. Elen informou que eles tinham tomado muito vinho. Ficamos conversando. Eu reconhecia que meus amigos gostariam de ter alguma privacidade, mas eu não era capaz de ficar sozinho em outro cômodo. Após um tempo curto, ouvimos passos no corredor. Chamamos por nossos amigos, mas não tivemos resposta. E então o festival de perturbações tomou lugar naquela propriedade. Ouvimos vozes e barulhos como se um razoável número de pessoas estivesse na casa. O tempo todo nos perguntávamos o que era aquilo. A preocupação com nossos outros amigos era genuína, mas ninguém tinha coragem de ir até onde eles estavam. Eu me sentia como se tivesse sete anos de idade novamente, sozinho em minha cama, após acordar de um pesadelo e não ter coragem alguma. Em um momento reconhecemos a voz de Mauro e Priscila e chamamos por eles. Perguntaram se a gente estava fazendo aquele barulho. Num gesto impulsivo, fomos todos ao encontro deles. Nos juntamos no mesmo cômodo e ficamos ouvindo as perturbações até o dia amanhecer. Quando a luz do dia invadiu o ambiente, andamos pela casa com cuidado. Os barulhos cada vez mais distantes até cessar. Fomos para cozinha conversar, comer e decidir o que fazer dali em diante. Uma coisa a gente era de comum acordo. Tinha algo estranho naquele lugar além de histórias de patriarcas raivosos e simpatia por conceitos raciais.
aproveitar o outro dia, então fomos descansar. Fomos pra cama após um jantar improvisado com conservas, queijo, presunto e pães. Lembro que deitei e demorei a dormir pensando nas inúmeras coisas que tinham acontecido naquela casa. Quantas vidas, sonhos, pompa e circunstância não teriam tido vez naquele lugar! Pensei no célebre Monteiro Lobato, amigo da família, que diziam ter se hospedado ali. Não sabia se isso era fato, mas recordava bem as polêmicas que diziam que o autor de Sítio do pica pau amarelo era um entusiasta da eugenia e um racista empedernido. Bem, notícias falsas não eram um privilégio exclusivo de nosso tempo, assim como o preconceito. Dormi e sonhei com paisagens campestres e grupos com chapéus pontudos em imagens de redes sociais. Acordei no meio da noite com barulhos no quarto. Pensei que Pedro ou Mauro estivessem ali fazendo alguma brincadeira. Chamei por um e outro, mas não obtive resposta. A penumbra no quarto não era total, de modo que eu podia ver as telhas e as divisões claras entre elas, naquele teto alto. Estava me distraindo quando novas perturbações me chamaram a atenção. Em dado momento vi diante de mim um vulto escuro de forma humana. “Pedro, Mauro? Chamei, mas não houve resposta. O vulto se ergueu sobre mim e foi flutuando até o teto. O pavor que tomou conta de mim nesse momento foi uma das coisas mais reais que já experimentei na vida. É um fato tão absoluto em minha existência que jamais cogitei estar sonhando ou em qualquer outro estado de consciência indefinida. Meu coração acelerou e um calafrio me dominou. Aquele espectro ficou acima de mim um tempo, se contorceu, emitiu uma espécie de urro e desapareceu. Senti me paralisado de medo e comecei a chamar pelos amigos. Ouvi quando Elen disse: “É o Junior...” Em seguida Pedro falou comigo. Levantei, tateei em busca do celular. Liguei a lanterna do aparelho e fui trôpego até os amigos. Encontrei-os no quarto contiguo ao meu. Pedro disse ter ouvido algo. Eu disse: “Eu vi algo!” Contei para eles o que ocorrera. Chamamos por Mauro e Priscila. Não houve resposta. Elen informou que eles tinham tomado muito vinho. Ficamos conversando. Eu reconhecia que meus amigos gostariam de ter alguma privacidade, mas eu não era capaz de ficar sozinho em outro cômodo. Após um tempo curto, ouvimos passos no corredor. Chamamos por nossos amigos, mas não tivemos resposta. E então o festival de perturbações tomou lugar naquela propriedade. Ouvimos vozes e barulhos como se um razoável número de pessoas estivesse na casa. O tempo todo nos perguntávamos o que era aquilo. A preocupação com nossos outros amigos era genuína, mas ninguém tinha coragem de ir até onde eles estavam. Eu me sentia como se tivesse sete anos de idade novamente, sozinho em minha cama, após acordar de um pesadelo e não ter coragem alguma. Em um momento reconhecemos a voz de Mauro e Priscila e chamamos por eles. Perguntaram se a gente estava fazendo aquele barulho. Num gesto impulsivo, fomos todos ao encontro deles. Nos juntamos no mesmo cômodo e ficamos ouvindo as perturbações até o dia amanhecer. Quando a luz do dia invadiu o ambiente, andamos pela casa com cuidado. Os barulhos cada vez mais distantes até cessar. Fomos para cozinha conversar, comer e decidir o que fazer dali em diante. Uma coisa a gente era de comum acordo. Tinha algo estranho naquele lugar além de histórias de patriarcas raivosos e simpatia por conceitos raciais.
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