quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

OS 5 MELHORES LIVROS DE TERROR QUE LI (Crítica literária)

Apresento aqui os cinco melhores livros de terror que li na vida. É uma sugestão, mas também uma clara homenagem a essas grandes obras que me divertiram e influenciaram.

A COISA - Stephen King
Resultado de imagem para livro a coisaEsse dispensa apresentações. A obra que segundo o próprio autor, é o seu melhor livro. Sem dúvida um dos romances do gênero mais incríveis. Um grupo de crianças luta contra um ser sobrenatural que assume a forma dos medos pessoais. Tudo acontece em Derry, a famosa cidade assombrada de King. Agora o grupo, depois de tantos anos, tem que voltar a lutar contra o ser sem nome.





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O ILUMINADO - Stephen King
É, mais uma vez o mestre. Ele realmente é o rei. A história assombrada do hotel Overlook onde um homem vai enlouquecendo e ameaça a família. É impossível ler e não se imaginar naquele lugar com suas histórias terríveis.







HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS - Edgar Allan Poe
Resultado de imagem para livro histórias extraordinárias edgar allan poePoe não pode ficar fora de nenhuma coleção de livros de histórias assustadoras na minha opinião. Ele tem várias coletâneas. A que mais me marcou foi esta, que inclui o tenebroso conto Gato preto. Se você ainda não leu, precisa ler.












A FLORESTA DOS SUICIDAS - Jeremy Bates
Resultado de imagem para a floresta dos suicidas livroE que tal um livro recente? Jeremy Bates conseguiu me surpreender e deixar angustiado nesse livro. Um grupo de turistas americanos - tinha que ser, né - decide passear pela floresta de Aokigahara, a floresta mais assombrada do mundo, conhecida pelos seus inúmeros suicídios anuais. Logo eles se perdem e percebem que algo maligno os cerca. O que chama a atenção é que Bates escreve algo verossímil, tão convincente que aceitamos qualquer explicação para o que espreita o grupo na floresta.




O EXORCISTA - William Peter Blatty
Resultado de imagem para o exorcista livroOutra obra que dispensa apresentações. Como essa lista é bem básica, não posso deixar de colocar esse livro. Todo mundo que se interessa por terror deve ter visto o filme. O livro, bem, esse vai lhe trazer o terror de uma maneira mais profunda. As discrições da possessão na garota Reagan são incríveis.

domingo, 16 de dezembro de 2018

SÓCIOS INFERNAIS (Conto de terror)

Ele acorda no meio da noite extremamente assustado. Tem a impressão imediata de que há algo errado. Se ergue de seu leito só de papelões. Não tivera tempo para conseguir uma cama de verdade. Claro que não. Agora tem que conferir tudo, talvez até pegar em alguma arma para se defender. Olha em volta, mas com a limitada iluminação das luzes da rua é difícil ver alguma coisa. Fica parado pensando se deve ou não acender a lâmpada do quarto. Chamar a atenção à toa ou se expor tão subitamente, não seria nada perspicaz. Espera mais uma pouco. Não escuta nada além dos sons comuns da noite. Tudo normal. E ela? Estaria bem? Melhor conferir. Eram somente os dois naquela função. Mas era bom também ver a guarda, a defesa, o bicho lá embaixo. Levanta-se devagar no escuro. Tinha todo tipo de inimigo. Anda devagar, fazendo o mínimo de barulho possível. Acha melhor pegar a pequena lanterna, a que é um chaveiro, excelente para ocasiões como aquela. Ligar a lâmpada seria mesmo imprudente. Tateia no cantinho da parede. É lá que colocou as coisas. As armas, faca, a pistola. Acha as chaves, onde está a pequena lanterna, mas isso faz barulho, coisa que o irrita. Aperta as chaves todas juntas na mão para não tilintarem mais. Acende a pequena lanterna e se espanta por iluminar muito. Mas claro, nem devia se admirar. Estava muito escuro, qualquer coisa faria uma enorme diferença. Até um fósforo. Ilumina a metade do quarto, movimenta devagar o foco em direção a ela. Com cuidado, se estiver dormindo não gostaria de desperta-la. A borda da luz encontra parte do corpo deitado, caído lá. Que bom que não foi o rosto logo, certamente ela iria acordar com a luz nos olhos. Ilumina somente até seu ventre. Para e observa o movimento, a respiração regular. É uma bela visão, sua pele tenra, seu corpo. Apenas uma calcinha branca. Inocente, pura, o que a fazia perfeita para o propósito. Fica um tempo observando a barriga dela subindo e descendo num ritmo próprio. Isso era bom. Não achava que ela estivesse fingindo. Provavelmente dormira mesmo. Tinha passado por coisas terríveis e outras piores viriam ainda. Estava se sentindo absolutamente sereno com esse pensamento quando o barulho lá embaixo chama sua atenção. Muda rapidamente o foco da lanterninha, se dirige até a porta com passos silenciosos e mais rápidos possíveis. No caminho apanha a arma. Apesar de confiar na guarda, não deve descer desprevenido. Cruza o corredor, chega as escadas, vai descendo pé ante pé com ansiedade e determinação. Pode ser a polícia, algum parente da menina. Um anjo? Vai haver sangue, pensa. Mas já está decidido. Há muito tempo, desde que adentrara àquela vida. Trata de erguer a arma. Confiava na guarda, mas, nunca se sabia, não era? Se aproxima da sala com cautela. Ilumina os cantos, a porta da frente. Tudo está em ordem. Se sente relaxado totalmente desde que acordara. Tudo está em ordem. A porta devidamente trancada. E a guarda operante como sempre. O imenso demônio animalesco, metade cão, metade réptil. Um presente das trevas, um auxiliar valoroso. Por vezes ficava fora de controle e arrancara dedos de um ou outro, mas era normal. Qualquer cachorro mordia o dono uma vez ou outra, que se podia dizer de uma criatura dos infernos? Fazia parte de todo o pacote negociado com o próprio Lúcifer. Vidas e sangue para ele, exatamente como a menininha sequestrada, presa lá em cima. Em troca de poder, boas vendas de drogas, dinheiro, crias do inferno – que estranhamente duravam só um mês, mas facilmente substituídos – e todas as coisas que acompanham os pactos que se faz com as trevas. Até mesmo uma noite de vigília com uma sequestrada naquele barraco imundo como aquele. Amanhã seria melhor, pensa enquanto passa a mão na criatura. Uma pessoa comum morreria do coração só em ver aquela besta.

domingo, 9 de dezembro de 2018

DEMONS IN THE SKY (Conto de terror)

Comprei a chácara por um preço realmente incrível. Depois de tudo que houve, lembrei daquelas histórias repetidas à exaustão de pessoas que compram casas assombradas por preços inacreditáveis. Mas a chácara não era assombrada. Nunca foi. O problema é que recebia visitas. Estranhas e aterrorizantes visitas. E isso não era exclusividade do meu recém adquirido imóvel, como viria a descobrir logo depois. Fui com meus familiares, amigos e seus parentes para a chácara a fim de aproveitar o final de semana. O primeira vez na minha propriedade, conquista de anos e anos de esforço, trabalho. Chegamos por volta do meio dia, nos estabelecemos e fomos cuidar do almoço. Foi pura descontração com o churrasco assando e as cervejas consumidas alegremente. Havia ali uma piscina rudimentar onde combatemos bem o calor. E assim seguiu o dia, horas de pura descontração em que esquecemos da rotina que nos cansava." Fim de tarde, uma comida leve e mais algumas cervejas. Veio a noite e as crianças foram dormir, exaustas de tanto se divertir. Ficamos tomando algumas cervejas e conversando sobre amenidades. Depois de algum tempo ficamos em silêncio ouvindo o som dos grilos e cigarras, olhando o céu estrelado – muito diferente do céu visto na cidade – e alguns até começaram a cochilar em suas cadeiras de praia. Eu já tinha tido a resolução de convocar a todos para nos recolher quando vi um clarão surgir por detrás da serra que contornava o horizonte, para além do mato que circundava a chácara. “Que é isso gente?”, indagou Andréia, minha esposa. Nossos amigos voltaram suas atenções ou despertaram de seus cochilos. Todos olhamos e vimos um objeto oval, gigante e luminoso se aproximar. “Isso é um disco voador, minha gente”, disse Marcão. Independentemente do que fosse, eu não queria ficar ali para descobrir. “Vamos entrar, pessoal, vamos entrar”, gritei, segurei na mão de Andréia e corremos para a casa. Os outros me seguiram, mas não sem antes gritarem e tropeçarem em cadeiras e uns nos outros. Chegamos até a casa, uns mais assustados que outros. Tomei a frente e fiquei com a porta entreaberta vendo o que era aquela coisa. Marcão, Érico e Naldo se postaram próximos para olhar também. O restante, tomado de medo, não quis ver. Foi então que a bizarrice tomou conta da minha propriedade diante de meus olhos tão pouco acostumados a coisas anormais. Aquele clarão chegou sobre a chácara e se desfez em vários pedaços que caíram como flocos de neve. E cada ponto luminoso daquele se transformou numa criatura esbranquiçada, desforme e indescritível. Os que caíram na minha propriedade ficaram andando de um lado para outro, parecendo fungar como animais, examinando as coisas ao redor, ora caminhando ereto como homens, ora rastejando como bichos. Olhei para meus amigos e vi a expressão de espanto e horror em seus rostos e soube também que eu devia estar igual. Os que tinha ficado afastados, vieram espiar o que acontecia, mas se voltavam assustados repetindo a pergunta: “Que é isso, meu Deus?!” Continuei olhando, analisando a situação. Se aqueles monstros viessem em nossa direção, teríamos que pegar as crianças, correr para nossos automóveis e fugir o mais rápido possível. Falei disso para o grupo, mas eles mal pareceram me ouvir. Marcão foi o único que acenou com a cabeça. “Será que são extraterrestres? ”, indagou Naldo. “Não! Vieram naquela espécie de nuvem brilhante e caíram se espalhando por todos os lados”, falei. “É claro que são extraterrestres”, disse Manuela depois de uma rápida olhada. “Vamos embora, gente”, alguém pediu choroso. “Essas coisas são demoníacas”, falei e no meu íntimo tudo corroborava para aquela afirmação. “Extraterrestre vem em nave, não voando no ar como nuvem! ” E então nesse momento as criaturas fizeram um barulho conjunto, se juntaram e correram saltando os limites da propriedade. Pareciam um grupo de bichos fugindo num estouro de manada.
            Ficamos acordados até de manhã. Deixamos apenas as mulheres dormirem e fincamos em vigília, preparados para fuga, a madrugada toda, tomando café, falando sobre o incidente e olhando pela janela. Não houve mais sinal algum daquelas coisas. Fomos embora de manhã exaustos e em silêncio. Demorei um mês para voltar à chácara e quando o fiz, fui antes nos meus vizinhos indagar sobre o ocorrido. Na primeira visita encontrei um senhor que não se espantou nem um pouco com minha descrição. Ele disse que conhecia bem o fenômeno. “São demônios que caem do céu. Estão por aqui só de passagem, não precisa ter medo. Apenas evite estar à céu aberto entre meia noite e meia noite e dez. Antes e depois não tem perigo. Todo mundo por aqui já viu esse negócio. É só tomar cuidado”, narrou o homem com uma calma espantosa. Outra pessoa, de ares religiosos, travou rápida conversa e concordou com o velho. “São as potestades do ar descritas na bíblia”, explicou. Depois voltei a frequentar o lugar para praticar meu lazer. Alertava meus novos visitantes sobre o acontecimento – que não acontecia em todas as ocasiões – e as vezes mostrava, na segurança da minha varanda, aqueles demônios caindo do céu.

domingo, 2 de dezembro de 2018

FAMOSOS (Conto de terror)


Rafael Silva, conhecido na internet como Ra Fear gozava de certa fama com os vídeos que ele e um amigo faziam sobre lugares supostamente assombrados. Sua mais famosa filmagem, o casarão da água verde, tinha pouco mais de duzentos mil acessos. Isso era suficiente para o rapaz pousar de subcelebridade entre os conhecidos sem maiores questionamentos. Rafael estava sempre procurando lugares supostamente assombrados para explorar. Junto ao amigo, Ednardo, conhecido como Eddie. Além do casarão da água verde, aventura mais dispendiosa da dupla, eles tinham ido a uma casa onde supostamente vivera um canibal, cujo fantasma diziam aparecer em noites de sexta feira. Invadiram um cemitério tarde da note para filmar, visitaram as ruínas de um hospital psiquiátrico, e uma chácara abandonada com a fama de abrigar outros tipos de duendes e almas penadas. Além de meia dúzia de outros lugares famosos por aparições. Rafael e Ednardo, de verdade, nunca registraram de fato algo incrível, mas compensavam isso com um programa de efeitos especiais. Nada muito exagerado para não ficar óbvio a simulação, mas sombras sutis, silhuetas quase indetectáveis no fundo do vídeo além de efeitos sonoros, garantiam um material curioso e com público certo na quase infinita Surface. O último trabalho deles, porém contém algo escabroso, ainda não explicado totalmente. E não é fruto da engenhosidade ou criatividade dos rapazes, isto é certo. Rafael e Ednardo, ou, como gostavam de ser conhecidos, Ra Fear e Eddie, pegaram seus equipamentos, suas motos e se aventuraram a ir fazer imagens de uma pequena residência abandonada nos limites da cidade. Diziam que a casa tinha fantasmas e era assombrada desde que fora construída. A fama, explicavam os rapazes no início do material encontrado, se dava porque que o lugar fizera parte de uma imensa fazenda do século XVII que tinha inúmeros escravos. Segundo os rapazes, que fizeram razoável pesquisa sobre o lugar, a casa ficava justamente onde era o pelourinho. Onde incontáveis escravos haviam encontrado a morte através de suplícios terríveis. A reconstituição, baseada no material dos rapazes, indica que eles chegaram ao local por volta das dez da noite. Fizeram uma prévia do ambiente, filmando diversas panorâmicas e depois começaram a fazer imagens do perímetro da casa. Nesse momento percebemos os rapazes falando de barulhos inaudíveis (que se supõe seriam introduzidos na edição do material) e repetindo frases de efeitos. Nesse momento fica claro que Rafael e Ednardo produziam filmagens básicas para depois manipular à vontade no computador. Depois segue-se imagens no interior dos restos da casa. Com excelente material de iluminação podemos ver os detalhes dos cômodos, o que causa estranheza são os movimentos do cinegrafista. São súbitos, repetidos, simulando o tempo todo um cinegrafista descuidado que se move espontaneamente. Em dado momento se escutam imprecações ininteligíveis e Eddie, que estava filmando, baixa a câmera e conversa nervosamente com Ra Fear. – Caralho, tem alguém aqui, cara – ele fala. E o que acontece depois não parece nenhum pouco simulação. Nenhuma imagem mais é captada com propósito. O rapaz simplesmente corre com o equipamento na mão sem se preocupar em registrar coisa alguma. Ouvimos o som do vento, dos passos e gritos assim como uma voz grave, dando ordens monossilábicas. Algo semelhante a alguém guiando um animal. Em nenhum momento achamos que aquilo é algo feito para impressionar. É um material cru, descuidado de verdade e perfeitamente verossímil. Depois de outros gritos a câmera vai ao chão e fica filmando a relva por duas horas seguidas. Ao fundo ouvimos os gritos dos rapazes, urros e depois apenas o som da noite. Rafael e Ednardo foram encontrados por um agricultor no outro dia com as gargantas dilaceradas. Apesar do registro do material em vídeo, ainda não se tem ideia do que casou suas mortes. Teorias exageradas da internet surgiram dizendo que havia um feitor que costumava degolar os escravos. Seus dias tinham chegado ao fim quando dois negros o capturaram e lhe deram o mesmo destino. Agora no além, continuava a luta onde contendores degolavam uns aos outros eternamente. E quem invadia aquele local estava sujeito à guerra entre torturador e escravos. Alguns meses depois o material dos rapazes caiu na rede e a visualização do vídeo atingiu cerca de mais de oitocentas mil visualizações.

domingo, 25 de novembro de 2018

O QUE ACONTECEU COM CARLA FILARDIS? (Conto de terror)


Eu sempre fui fascinado por essas histórias sobrenaturais, acreditava num outro mundo. Devo ter gastado incontáveis horas vendo filmes, lendo livros e vendo documentários sobre o assunto. De Alan Poe à Stephen King, de clássicos como o Bebé de Rosemary ao gore de Jogos mortais. Para mim o terror e o macabro sempre tiveram o encanto desde os tempos de criança. E foi com uma alegria impar que fomos morar naquela casa com fama de mal-assombrada. Eu e minha esposa que, embora não fosse tão entusiasmada como eu, partilhava o gosto por histórias assustadoras. Durante os primeiros dias não notamos nada de anormal na residência, mas com o passar das semanas, começamos a perceber vozes na calada da noite. Eu e minha esposa ficamos bastante excitados e nenhum pouco temerosos. Embora eu soubesse que o sobrenatural tivesse fama de perigoso, para mim, as pessoas só se davam mal nos filmes e livros. Quem na vida real conhecia alguém que morrera vítima de uma alma do outro mundo? Mas eu estava desprezando outros fatores... e disso me arrependeria depois. Então os fenômenos foram se intensificando. Vozes, passos e portas batendo até certas horas da noite. Após isso, o silêncio e mais nada. Eu tinha ido viver ali sabendo dessas coisas, inclusive que um casal que morara ali costumava receber um grupo e fazer invocações e rituais estranhos. Fora isso, nenhum massacre, morte ou coisa mais trágica tiveram lugar na casa. Os barulhos inexplicáveis chegaram até certo ponto, mas nunca nos incomodaram ou trouxeram sustos maiores, mas minha esposa começou a sofrer de depressão. Pelo seu histórico – ela tinha sofrido abuso quando criança – não pensei que tivesse qualquer relação com o lugar. Ela fazia tratamento, o mesmo acompanhamento que fizera anos atrás e pudera se recuperar totalmente. Mas as coisas foram piorando e uma noite – a casa estava estranhamente tranquila -, minha esposa se ergueu de um sono agitado e começou a gritar dizendo que estava encarcerada por espíritos. Achei que a expressão fosse pura manifestação de angustia e delírio, não tendo relação real com as manifestações da minha casa. Mas eu estava errado, hoje tenho a plena consciência que errei desgraçadamente. Minha esposa só piorou e eu tive inclusive que impedir seus ímpetos suicidas. Veio a noite terrível em que após um choro convulsivo, minha mulher começou a gritar numa língua estranha e me olhou com uma expressão de puro ódio. Parecia possuída como nos filmes hollywoodianos mais cheios de clichê que se pode imaginar. Nesse momento a casa toda começou a manifestar um imenso barulho. As vozes, antes ouvidas espaçadas, começaram a se manifestar todas ao mesmo tempo, os passos, como se fosse um batalhão, correndo por todos os cômodos da casa, as portas batendo vigorosamente. Eu gritei pedindo para que parassem com aquilo num apelo desesperado e irracional. Mas algo em mim já dizia que não haveria misericórdia... Minha esposa levantou-se e saiu correndo pela casa. Eu a segui para impedir que se machucasse, mas logo a perdi de vista. Eu a procurei por todos os lugares da casa e jamais a encontrei. Verifiquei portas e janelas e constatei que todas estavam fechadas. Ela até poderia ter saltado por uma das janelas, mas não poderia tê-las deixadas fechadas como estavam. Pelas portas, não havia dúvidas: a da frente e dos fundos estavam devidamente fechadas à chave. Chamei a polícia e eles não deram muito crédito à minha história. Disseram que ela devia ter saído de alguma maneira, talvez até mesmo com minha ajuda. E foi isso. Só isso! Até hoje, após oito longos meses não encontrei pista sobre o paradeiro da minha esposa. Tentei todos os recursos possíveis, de internet à TV e rádio locais. Nada, absolutamente nada sobre onde aquela mulher pode ter ido. Eu revejo aquela cena mil vezes por dia, ela correndo, dobrando um corredor para nunca mais ser vista novamente. Houveram centenas de teorias, inclusive de que eu a tivesse matado, mas nada ficou claro. Abandonei a casa, e isso acabou com minha vida. Agora vivo de favores, me arrastando durante as horas do dia, padecendo nas noites insones com as perguntas: onde está minha mulher? O que aconteceu com ela?

domingo, 18 de novembro de 2018

O AÇOUGUEIRO (Conto de terror)


A pequena cidade ficou consternada com o acontecimento. A mulher e a filha de Isaque, o açougueiro mais conhecido, desapareceram naquela tarde de domingo como se o chão houvesse aberto um buraco e as puxado para as profundezas da terra. Veio a polícia da cidade, depois auxílio de investigadores da capital, mas não descobriram sequer uma pista sólida para seguir. O caso trouxe espanto e pavor. Aquilo não era o tipo de coisa comum numa cidadezinha como Paraíso Alto, embora alguns discordassem. Esse mundo não é mais o mesmo, diziam alguns. Isaque foi inúmeras vezes interrogado. A primeira vez o homem se desfazendo em lágrimas, na segunda e terceira vez parecia frio e distante como se estivesse catatônico. Houve quem falasse de choque pós-traumático, termo quase incompreensível para aquela gente de cidade simples. O impacto do incidente arrefeceu juntamente com as investigações. Pouco a pouco, as coisas voltaram ao normal. E foi justamente nesse tempo, depois de dois meses, que Isaque voltou ao trabalho. Estivera à beira da inanição, passando por todos os tipos de privações financeiras, salvo pela caridade alheia. Sem mais o que fazer, além de aguardar, retornou ao ofício de açougueiro. Na pequena venda ao lado de sua casa, voltou a comercializar suas carnes e frios. Foi nesse mesmo tempo que começou a vender uma linguiça que chamou a atenção dos clientes. Um produto de alta qualidade, de sabor incrível. Linguiça apimentada que agradava a todos e em diversas ocasiões. A procura foi enorme e todos faziam questão de elogiar a mercadoria. Isaque, ainda visivelmente abalado pelo sumiço da mulher e filha, só concordava.       - Mas que linguiça boa, compadre – diziam quase todos os dias no balcão de Isaque. Ao que o açougueiro se limitava a comentar:
            - É nova, apimentada... Muito boa mesma, compadre.
            E foi então que uma conversa estranha se espalhou na cidade. O boato de que a nova linguiça, oriunda do açougue de Isaque, sucesso total, era feita de carne humana. As más línguas começaram a dizer que Isaque havia matado a mulher e a filha, moído e temperado suas carnes para fazer recheio de linguiça. Obviamente houve gente que achou a história absurda, mas muita gente começou a acreditar e espalhar a história. Foi Rodolfo, o conserta tudo da cidade que alertou o vizinho da história que estavam espalhando sobre sua mercadoria. Isaque xingou e chorou, ofendido por tamanho insulto. Jurou esquartejar quem tivesse inventado aquela injuria. Mas os boatos continuaram e logo as pessoas deixaram de fazer suas compras no açougue de Isaque. Acompanhados de Rodolfo, que se prontificou a ajudar o vizinho, a polícia fez buscas no estabelecimento do homem afim de eliminar aquelas suspeitas absurdas. A princípio os homens não sabiam o que o procurar, pois quem entendia de anatomia a ponto de diferenciar pedaços miúdos de carne humana e animal? Mas não demorou para que os homens, mesmo numa busca displicente – na verdade tinha ido ali com a resolução apenas de acabar com aqueles boatos – encontrassem indicações de que ali havia acontecido um crime. Roupas de uma mulher e uma criança, ensanguentadas foram encontradas numa sacola escondidas num canto. Isaque não soube explicar como aquele material estava ali. Mas não demorou para que as coisas ficassem ainda mais complicadas. Um dos policiais achou orelhas humanas, dedos e outros pedaços de carne num saco, congelados no fundo do freezer. O açougueiro foi preso sob gritos e protestos. Rodolfo levou as mãos à cabeça.
            - Pelo amor de Deus, compadre!
            O povo de Paraíso Alto ficou absolutamente chocado com a história. A imprensa do estado fez cobertura do caso que logo foi comparado aos crimes da rua do Arvoredo, caso famoso que teve lugar em Porto Alegre no século XIX. Isaque continuou negando a autoria do crime, mesmo com a comprovação de que roupas, sangue e demais restos humanos eram de sua mulher e filha. Uma manhã o açougueiro foi encontrado morto, enforcado com um curto pedaço de tecido, engenhosamente preço nas grades da cela, numa espécie de garrote onde só foi possível se matar de joelhos, com o corpo devidamente curvado. A polícia forense fez um exame geral nos apetrechos de trabalho de Isaque, mas não encontrou mais vestígios de sangue e carne humana em nenhum outro canto, fato que indicaria que ele não produzira linguiças naquele local, muito menos com carne de pessoas. Rodolfo ficou preocupado com a descoberta, pois achara que as roupas, alguns pedaços do corpo da mulher e da criança seriam suficientes para comprovar a culpa do vizinho. Devia ter levado mais que isso para o estabelecimento de Isaque, o que seria complicado. Pelo menos estava tranquilo. Ele cometera um crime ao qual ninguém suspeitava ser ele o autor, e ainda por cima conseguira colocar a culpa no marido e pai das vítimas, além da história das linguiças, que mesmo desmentido pelas autoridades, continuava como fato na boca do povo.

domingo, 11 de novembro de 2018

SATÂNICOS (Conto de terror)


Começo essa mensagem informando que isso não é uma brincadeira. Talvez você até possa encontrar algumas notícias sobre minha morte ou desaparecimento. Deixo esse escrito como alerta e uma pequena ajuda para aqueles que quiserem desvendar meu assassinato. Meu nome é Felipe Alonso, sou programador e tinha como hobby – nada saudável, hoje reconheço – de chafurdar os abismos da internet. Foi lá que me deparei com um grupo auto denominado O Sábios. Como muitas outras associações obscuras da internet, esse grupo se definia como adoradores de Satã. A peculiaridade deles era a de que suas crenças se baseavam na premissa de que o príncipe das trevas era o ser mais injustiçado do universo. Lúcifer sofrera a punição de um Deus déspota e soberbo. Foi num foro online que travei conhecimento com os praticantes desse culto. A nível de curiosidade mórbida, troquei contatos com um sujeito denominado Demon8. Para ser justo, admito que Demon8 me advertiu em várias ocasiões e perguntou muitas vezes se eu queria mesmo conhecer o grupo. Acreditando que aquilo se tratava de mais uma bravata da deep web, disse que tinha interesse em entrar no grupo. Demon8 falou que  poderia fazer uma iniciação online comigo e um dia promover um encontro com um de seus representantes. Disse-lhe que era uma boa ideia e confesso que digitei isso rindo bastante. Muito interessante saber que os seguidores de Satã tinham uma escola de conversão via internet. Uma coisa aparentemente tosca que tinha outros objetivos. Então meu contato me enviou vários pdfs falando de sua crença. Não tive muita paciência para ler o material completamente, mas em suma eles se diziam membros da religião mais antiga da terra, a única que defendia um ideal de justiça e uma aberta rebeldia contra Deus. Depois de responder a algumas perguntas, das quais não recordo no momento, Demon8 indagou se eu estava preparado para o próximo passo. Perguntei qual seria e ele respondeu que se tratava de cometer um assassinato ritualístico para consolidar meu desejo de entrar na seita. Após disso, sem muita conversa, me mandou um link no que me direcionou a um vídeo. Nesse momento vi que não estava diante de alguém que estivesse apenas brincando. No vídeo, Demon8 assassinava um homem e se lambuzava com seu sangue. Como tive certeza de que o vídeo era real? Simples, a imagem em alta definição mostrava um sujeito que se apresentava como Demon8 e dizia que a seguinte morte era para servir de modelo para mim. Citava meu nome, dados e dizia que era uma exigência que matasse alguém da mesma maneira e gravasse meu crime. Nessa ocasião, passei a noite em claro pensando na loucura em que tinha entrado. Por causa de mim, alguém tinha sido morto. No outro dia, tentei apagar meus rastros na rede fazendo uso dos meus conhecimentos. Um mês depois, quando começava a pensar naquela história como um pesadelo distante, recebi um telefonema em meu celular de Demon8. Naquele mesmo instante joguei fora meu chip. Como não usasse mais nenhuma rede social, passei a receber bilhetes de Demon8. Era inexplicável como eu os achava, algo a tal ponto tão impressionante, que eu achava que aquilo tinha um quê de sobrenatural. Os recados que eu recebi exigiam que eu continuasse com o que tinha me proposto a fazer. Era isso ou uma morte horrível. Cheguei a mudar de apartamento, mas os recados não paravam de chegar. Certa noite, num impulso, liguei para um dos números do bilhete e disse que não ia matar ninguém, que tudo tinha sido um mal-entendido, uma brincadeira estúpida de minha parte e que se não me deixassem em paz ou eu iria colocar a polícia no meio daquela história. O homem do outro lado simplesmente disse que eu não tinha como escapar e que ficasse a vontade de fazer o que eu quisesse, só devia ficar advertido que as consequências estavam por vir. Ontem à noite recebi um ultimato. Eu teria apenas um dia para resolver. A polícia agiu com incredulidade quando eu disse que não tinha mais o link do crime, tudo se fora com a limpeza dos meus rastros. Resolvi fugir. Tomei um ônibus de viagem e depois de uns bons cem quilômetros, desci e me hospedei numa pequena pousada de beira de estrada. No meio da noite, acordei com o telefone tocando. Ao atender apenas ouvi: - Não adianta fugir, nós sabemos onde você está. – Foi então que eu me sentei e escrevi esse relato. Amanhã pretendo fazer cópias deles e continuar na minha fuga, deixando em cada canto essa mensagem.

domingo, 4 de novembro de 2018

DO OUTRO MUNDO (Conto de terror)


Ele não colocava muita fé nessas histórias de almas penadas, mas também não duvidava. Era um caboclo do sertão que não se preocupava muito com as especulações sobre o outro mundo. Mas então algo veio a acontecer que mudaria muita coisa nas suas crenças. Fernando fazia um caminho sagrada sobre seu cavalo nas noites de sexta feira e sábados. Era uma pequena empreitada de poucos quilômetros, mas com caráter extremamente importante: ir ver a noiva. Ia sempre a noitinha, por volta das oito e voltava dez, onze. Era muito querido pela família da noiva e as vezes conversava com o pai da sua amada sobre roça e coisas afins. As vezes a troca de ideias entre futuro genro aproximava da meia noite, então, Seu João se apressava em se despedir do rapaz. Fernando beijava a noite e tomava seu caminho à cavalo. As vezes achava ríspida a resolução do futuro sogro em despacha-lo súbito, quando se aproximava das doze da noite, mas acreditava que isso fosse uma resolução do velho para que a filha não ficasse mal falada na vizinhança como a moça que ficava com o noivo até depois da meia noite. O motivo, no entanto, era outro. Fernando, não dava muita atenção, mas próximo a margem de um pequeno córrego, no caminho para a casa da noiva, havia uma cruz que sinalizava que alguém tinha perdido a vida ali. Diziam que ninguém passava pelo lugar depois da meia noite, pois coisas estranhas aconteciam. Ninguém contava ao rapaz que o motivo da despedida repentina era para que ele evitasse os perigos do sobrenatural nesse ponto, no horário mágico que permitia a intercessão dos mundos. Porém, certa vez, devido a uma conversa empolgada sobre novas máquinas agrícolas, Fernando estava na residência da noiva faltando apenas dez minutos para a meia noite. Seu João, como sempre, temeroso de alma penada tratou de manda-lo embora. Rapaz, já é quase meia, noite, melhor você ir indo, falou se levantando da cadeira de balanço na varanda. Resignado, o rapaz foi beijar a noiva e pegar seu cavalo. Ele só saberia depois, mas a noiva e sua família, a partir do momento em que ele saiu, começaram a rezar para que ele fosse rápido e passasse pela cruz antes que desse a hora das visagens. Fernando, como sempre, seguiu sem pressa. Gastou logo os oito minutos que lhe restavam e chegou à margem do córrego meia noite e dois. Tudo transcorri na mais absoluta normalidade até que o Primoroso, o cavalo de Fernando estacou súbito. Estranho, pensou Fernando, aquilo não era do feitio do animal. Que tinha acontecido? Primoroso virara uma mula teimosa. A princípio, ele adulou o bicho e bateu com os calcanhares de leve nas suas ancas. O cavalo andou mais três metros, ultrapassou o córrego e estancou novamente. Dessa vez, Fernando foi mais severo nos comandos. Falou com o cavalo como costumava fazer e já estava prestes a  xinga-lo quando percebeu duas coisas desconcertantes: um vento frio vindo do nada e uma presença de puro espanto. Foi olhando para trás, mas antes que pudesse completar o ângulo para ver o que tinha atrás de si, viu, pela sua visão periférica um ser escuro. Voltou-se para frente e sentiu todos os pelos do seu corpo ficarem de pé. Seria a alma do caboclo dono daquela cruz ali que ele não dava importância? Fernando voltou a fustigar o animal, queria sair dali o mais rápido possível, mas o cavalo parecia de pedra. Foi então que tudo piorou vertiginosamente. O rapaz sentiu numa espécie de onda de choque quando aquela coisa tocou no seu cavalo... Subiu na garupa do animal. Primoroso relinchou, chegando a erguer a meia altura as patas dianteiras. Houve um momento em que o bicho pareceu relaxar, mas ele apenas puxou o fôlego e começou a dar coices e se movimentar como um cavalo de rodeio. Fernando, sem conseguir olhar para trás, se segurou como pôde e cerrou os dentes entre o terror daquela presença e a vontade de gritar rogos e pedidos de ajuda. Primoroso correu alguns metros, chegou numa clareira e começou a rodopiar. O que quer que estivesse em sua garupa, não o abandonou. Fernando podia sentir a carona indesejada com sua presença de chumbo às costas, forçando as ancas do pobre animal com seu peso do outro mundo. O rapaz começou a rezar, mas isso pareceu não surtir efeito. Quando o cavalo parou de rodopiar, Fernando pensou em desmontar, mas a perspectiva de ficar a pé diante da aparição o enchia do mais puro pavor. Foi então que ele voltou a falar com o animal num misto de comando e cumplicidade. Abraçou o pescoço do bicho e começou a falar em seu ouvido: Vamos sair daqui, meu camarada, vamos... Vai, Primoroso, vai, vai, trote, trote, voltou-se e fez o movimento nas rédeas para que o cavalo trotasse em velocidade média. O animal obedeceu. Caminhou alguns metros com algum esforço, pois a presença continuava na garupa, pesando como carga imensa. Então depois de um longo e desesperado relincho, o cavalo se livrou da carona indesejada. Fernando ouviu bem quando aquela coisa saltou e fez barulho ao pisar no chão. Primoroso aumentou a velocidade e correu bastante trazendo alívio para si e para o seu dono, se afastando da entidade e do seu local sagrado. O animal e seu dono chegaram em casa com as respirações alteradas. Fernando levou Primoroso até seu local de descanso, o abraçou e o beijou agradecendo por tê-lo salvado daquele episódio. Depois caiu pesado na sua cama e dormiu profundamente. No outro dia, a primeira coisa que fez, foi consultar a tia, uma mulher especialista em casos de assombração. Ela disse que o sobrinho fora vítima de uma alma condenada, presa entre os mundos por ter tido uma morte violenta. Evite de passar por esse lugar depois da meia noite, aconselhou a mulher. O rapaz também telefonou para a noiva e, mesmo se sentindo encabulado, contou-lhe toda a história. Ela confirmou o que dissera a tia e confessou ser essa a razão do pai dar por encerrado o encontro deles, pouco antes da meia noite. Fernando sentiu-se aliviado, mas quando foi verificar seu cavalo favorito, companheiro da luta contra fantasmas, teve uma surpresa bastante desagradável. O animal jazia no fundo da cocheira sem vida. Em seu quadril, marcado no pelo claro, estava um desenho escuro no formato dos membros da carona indesejada da noite passada.

domingo, 28 de outubro de 2018

O VULTO (Conto de terror)


O que pode nos causar o sobrenatural? A morte? Será que alguém já foi vítima de um fantasma, monstro do outro mundo? É mais racional se supor que não. Então, porque temos medo do sobrenatural, supondo que ele existe? Por que as almas de outras pessoas nos assustam se eles não têm materialidade para nos ferir fisicamente? Parece que há uma essência no sobressalto da assombração que nos atinge além da percepção. Um medo irracional que provavelmente está ligado a uma autopreservação mental. Nossa razão quer a todo custo evitar algo que a contrarie. Não é simplesmente receio do macabro, mas uma repulsa ao irracional, do inexplicável, daquilo que contraria tudo que sabemos. Ele era um homem culto. Não muito cético – acreditava em Deus e na prática saudável da religião – mas não era dado a crendices e superstições. Tinha uma vida equilibrada entre seus estudos e trabalhos e era admirado. O que aconteceu, veio sem nenhum aviso prévio. Talvez, apenas um prólogo do que viria. Sonhou sonhos estranhos aquela noite. E foram tão estranhos e confusos que aquilo lhe levou o sono. Então tudo teve começou. De início foi como o som de chuva fraca que se tornará tempestade. Havia algo de novo no seu quarto. Algo que não estava ali quando ele se deitara. Um peso no ar que ajudou a insônia a tomar proporções maiores. Tentou em vão, afastar aquilo do pensamento, mas isso só provocou mais e mais impaciência. Havia algo de novo perto dele e não sabia dizer o que era, ou porque estava ali. Buscou o sono e pegou um livro quando desistiu da busca. A manhã veio se anunciando na tênue mudança da luz do quarto. Infelizmente a leitura não lhe trouxe sono e aquela sensação não o abandonava. Havia algo de novo e era um tormento não saber do que se tratava e não poder afastar a mente disso. Uma presença. Era o que diria para algum interlocutor se no momento fosse desabafar com alguém. Desistiu. Foi ao banheiro e tomou uma ducha fria. Ainda tinha duas horas e meia antes de ir para o trabalho, mas era melhor deixar o quarto. Tomou o café da manhã, conferiu as notícias do dia no seu celular. O tempo todo tentou se concentrar no que fazia, mas era constantemente desviado do foco ao pensar naquela presença invisível. Provavelmente quando estivesse no trânsito, nos estresses do trabalho, se livraria daquilo. Engano! Chegou em casa se sentindo péssimo. O dia tinha sido de puros aborrecimentos. E aquilo, aquela sensação de alguém, algum vulto próximo a ele só crescera. Que diabos era aquilo? Um encosto? Uma alma querendo trazer alguma mensagem como no cinema? Lutou contra aquilo por horas, por dias. Nos momentos mais recônditos e nas horas mais públicas. Estava ficando louco! Acordava no meio da noite como se o tivessem chamado. Por que não vai embora? Perguntava no escuro, na sala, na cozinha, sempre se voltando para onde achava que podia estar aquele ser sem forma que se arrastava ao lado dele. Foi em um amigo que gostava de assuntos de ocultismo e foi recebido com um olhar assustado. Não vai acreditar, sei que não crer nessas coisas, disse o amigo. Mas tem algo te seguindo. Saiu dali indignado xingando céus e terra. Como era possível que um sujeito como ele fosse vítima de algo tão vulgar quanto um fantasma pegajoso! Que tinha feito pra merecer aquilo. Estavam todos loucos, inclusive ele? Regressou ao amigo que lhe fez orações e receitas que incluíam encantos e ervas. Naquela noite teve um ataque de fúria e arrebentou a mobília do quarto xingando sem parar a presença que não o deixava em paz. Chorou, pediu a Deus, falou em voz alta que estava ficando louco. Dormiu no tapete, como um cão. Acordou de súbito. A presença constante ali, só que dessa vez parecia zangada, descontente com ele. Respirou fundo. Se esforçou nos dias seguintes para ignorar a ira de seu acompanhante. Tornou-se desleixado. Já não conseguia fazer nada direito. Nem trabalhar, comer, estudar, qualquer coisa por mais banal que fosse. Visitou templos, terreiros, muitas teorias, mas aquele ser nunca ia embora. E pior, parecia reagir negativa ou positivamente ao que fazia. Abandonou o trabalho, a faculdade, foi pra casa de uns parentes sempre implorando pra não ficar sozinho com aquela coisa. Foi taxado de louco, consultado por psiquiatras. Nada resolvia, mas o pânico e um medo crescente tomavam conta dele. Uma noite resolveu perguntar aquela entidade o que queria dele. Então, no meio do escuro alguém falou: Te deixar louco se não quiser ouvir minha história. E qual sua, história? Ele perguntou. A voz então disse coisas que ele não lembraria nunca mais e depois cessou para sempre juntamente com sua presença. Ele voltou ao normal. Disse que tinham exigido apenas que lhe escutasse. O quê? Já não podia lembrar. Mas em essência dizia que os vivos deviam estar atentos ao que há do outro lado, escondido, prontos a entender ou enlouqueceram com a possibilidade de outros mundos.

domingo, 21 de outubro de 2018

RICHARD (Conto de terror)

O terror, em geral, tem forte relação com o passado. Casas ditas assombradas, tem na sua assombração o resultado de algo que aconteceu em outro tempo. Os vultos e fantasmas que nos espreitam pelo canto do olho, somente estão ali por causa de algo que deixaram os mortos aprisionados no presente. Maldições são resultados de ódios que ocorreram anos atrás e continuam manifestando sua desgraça através do tempo. Objetos enfeitiçados foram obra de um desejo de continuidade. O terror é de natureza velha, é sempre resultado, resquício, perpetuação da maldade e do erro que já foi. É um castigo para os presentes e a mensagem de que há coisas que devem continuar punindo indefinidamente. O velho Richard era um homem recluso e isso era coisa que se sabia. Aposentado já há alguns anos, poderia ter tido uma vida confortável e igual a de vários outros cidadãos comuns. Viúvo, solitário, se ocupava em acumular coisas. Depois da morte da esposa e dos filhos num acidente, ele perdera o contato com as pessoas e se fechara no seu mundo. E assim os anos se passaram sem que alguém se dispusesse a se aproximar dele. As explicações mais simples, eram as mais aceitas: o homem ficara louco por causa da solidão e tristeza. Um caso comum e inofensivo de loucura urbana. De fato, era sem importância e até útil o velho que pegava os moveis abandonados pela vizinhança e levava para sua espaçosa e abarrotada casa. As mães usavam sua imagem para assustar as crianças fazendo-as se comportar. Os moleques mais velhos evitavam deixar suas bolas de futebol caírem no seu jardim que acumulava todo tipo de sucata. Tudo corria na mais absoluta rotina vazia até aquele verão. As pessoas começaram a sentir um cheiro forte de podridão como nunca antes haviam sentido por ali. Fizeram uma busca, mas nada encontraram. A única coisa que descobriram foi de onde poderia vir o mal cheiro. Da casa do recluso e acumulador do bairro. Pensou-se a princípio que o homem tinha recolhido animais mortos. Alguém foi falar com ele, mas foi recebido de maneira bastante hostil O homem não falava mais, só grunhia e parecia agressivo. Tiveram certeza de que algo estranho acontecia naquela casa. Recorreram ao poder público, bombeiros e policiais vieram. Então a verdade veio à tona. Dispostos de maneira curiosa, foram encontrado cadáveres de 3 pessoas. Duas moças e um garoto. Os corpos apresentavam vários golpes de objeto cortante. O velho Richard não quis falar, ergueu um facão enferrujado para os homens da lei, mas foi imobilizado imediatamente. Permaneceu em silêncio diante das autoridades. A maioria concordou que ele perdera a capacidade de se comunicar e se suspeita que, mesmo que falasse, não seria capaz de justificar ou explicar o que fizera. Sobre as vítimas, descobriu-se que o garoto vivia na rua e as duas mulheres se tratavam de prostitutas. Ao que tudo indica, o velho os atacara à noite e trouxera seus corpos no carrinho que ele costumava usar. O eremita terminou os seus dias num hospício. Sem falar, só emitindo urros em situações extremas. Nunca se entendeu suas razões. A explicação mais plausível, foi que na sua loucura o homem tentou reconstruir sua família. Conclusão baseada na posição em que estavam os corpos dispostos ao redor de uma mesa. A casa de Richard veio a baixo com o tempo. Uma nova residência foi construída no lugar. Até hoje, 3 famílias já moraram lá. Todas abandonaram a casa pela mesma razão: barulhos inexplicáveis à noite, vultos, estranhos gemidos e, principalmente, lixo aparecendo pelos cantos do dia para noite. Não falta quem diga que a alma do velho Richard ronda o local carregando sua velha tristeza e obsessão em acumular objetos. Na casa há uma placa de aluga-se, já perdendo se desbotando, e apesar do bairro ter um constante de serviço de limpeza pública, o lixo se acumula na sua calçada e jardim de maneira espantosa.

domingo, 14 de outubro de 2018

A COISA QUE URRAVA parte 2 (Contos de terror)


A decisão que eu tomei para resolver aquilo trouxe resultado, mas também efeitos colaterais indeléveis. Como cheguei a passar uma noite toda acordado por causa dos urros, resolvi buscar mais a fundo a origem daquilo. Nem sequer esperei passar outra noite toda em claro. Uma foi simplesmente um inferno! Então, imediatamente na noite seguinte, saí de casa tão logo os urros começaram. Parei diante do meu portão e olhei para os dois lados da rua. Não havia viva alma naquela hora da noite. Apenas um vento frio e o farfalhar das plantas. Apesar de todos os postes da rua terem lâmpadas funcionando perfeitamente, parte da rua ficava na penumbra. Principalmente debaixo dos enormes pés de jambo que se dispunham na caçada – e por ali havia vários. Estranhamente não ouvi os urros. Aleatoriamente escolhi o caminho da direita e fui andando. Olhava os muros e as janelas das casas vizinhas. Caminhei pouco e logo às minhas ouvi os malditos urros. Voltei-me e fui andando, apurando o ouvido para descobrir de onde vinha aquele som. De acordo com minha audição atravessei a rua e fui em direção a um automóvel que estava dois terços estacionado na calçada, o restante na rua. Os urros e gemidos ficaram tão próximos que eu tive a certeza de que logo veria o ser que produzia aquelas lamúrias a noite toda. Parei perto do automóvel e escutei. Caminhei mais um pouco e a fonte do barulho pareceu diminuir. Voltei. Olhei para dentro do automóvel de vidros escuros, mas era impossível ver algo através do vidro. Será que a criatura estava dentro daquele automóvel? Agora ouvindo os urros e gemidos tão mais próximos, não sabia dizer se quem produzia aquilo era um ser humano ou um animal. Mas não fazia sentido uma pessoa ou bicho estarem preso dentro do automóvel. Que louco faria isso? Tive então uma ideia bastante óbvia: olhar debaixo do carro. Fui me agachando quando ouvi algo além dos urros. O som do movimento de patas de um animal ciscando no chão. Imediatamente me detive. Fui me afastando devagar e olhando para debaixo do automóvel. Tive certeza de que havia algo ou alguém ali embaixo. Parei, continuei observando e recordo bem que nesse momento os urros cessaram. Então ele – uso o pronome apenas para designar o ser, mas era impossível saber se era do gênero feminino ou masculino – saiu de debaixo do carro. Descobri naquele momento que o horror absoluto causa um choque quase indescritível e progressivo. Senti minhas forças serem drenadas pouco a pouco. Lembro que além do mal-estar físico intenso que senti, algo gritou na minha mente que o sobrenatural com fantasmas e demônios eram uma coisa absurdamente real. E eu estava ali e todo aquele horror não era um simples pesadelo. O ser tinha traços humanos, mas era deformado a um ponto que não se podia dizer que era uma pessoa com defeitos congênitos ou adquiridos. O monstro se arrastou para fora, olhou para mim e abriu a boca. Seu crânio exibia uma fonte baixa, seus olhos não possuíam simetria, apesar de terem algo de consciente, humano e febrilmente insano. Sua boca era enorme e tinha dentes enormes, amarelados e sujos. O nariz eram apenas dois orifícios desiguais entre a inexistência de lábios e os olhos. Seu tronco era curvado e seus membros, braços e pernas desiguais. Numa fração de segundos achei que aquela coisa fosse aleijada, mas logo conclui que não. Havia uma harmonia doentia na anatomia da criatura. Uma anatomia que a projetara para rastejar e ser repulsiva. Mas nem o mais vil dos repteis que eu conhecia tinha aspecto tão desagradável. A pele da criatura variava de um tom amarelo a branco e tinha muitas manchas escuras. Também exalava um odor de carne podre insuportável. Ele me olhou nos olhos, abriu a boca e urrou do jeito familiar que eu acompanhara todos os dias desde que viera morar ali. Nesse momento percebi que me faltava ar e minha pernas pareciam pesar toneladas. Caminhei de costas com os olhos pregados no monstro, vendo ele se arrastando e urrando. Com dificuldade me voltei e segui em direção à minha casa. Parei diante do meu portão, me virei e vi que o demônio ainda vinha em minha direção. Nada do que posso falar acerca daquela criatura se constitui numa certeza, mas tinha uma impressão bastante clara de que ele sofria e havia rancor no seu urro além de dor. Este foi um dos meus últimos pensamentos antes de desmaiar.
            Acordei com uma senhora com roupas esportivas me chamando. “Meu filho, que você tá fazendo deitado na calçada? ” Levantei, encarei a senhora, olhei para o local onde tinha visto o monstro a última vez e não vi nada. “Você está bem, jovem? ”, indagou a senhora. Disse-lhe que tinha passado mal quando vinha chegando em casa. “Isso foi coisa de farra...”, a senhora falou e eu me apressei a entrar em casa. Ela continuou falando algo, mas eu não ouvi. Tratei de entrar em casa para fugir de todo aquele horror que parecia estar ainda bem próximo de mim.
            Naquele mesmo dia fui para casa dos meus pais. Dois dias depois fui com uma empresa de mudanças pegar meus poucos pertences. Minha mãe insistiu em saber o que tinha me feito abandonar a nova casa. O tempo todo ela insinuava que eu tinha sido assaltado ou coisa parecida. Não me animei a contar a história daquela coisa que urrava. Mas não lhe ocultei tudo. Disse-lhe que a casa, a rua me dava arrepios e eu tinha dificuldade de dormir. Meus pais disseram que eu poderia ficar o tempo que quisesse. Obviamente não ouvi mais os urros daquela criatura, mas sua imagem ficou gravada em minha mente e, embora eu a tivesse visto por pouco mais de um minuto, era algo bastante nítido. Tanto que, as vezes a noite demoro a dormir lembrando de sua face e urros, além dos sonhos recorrentes que tenho com sua visão de puro horror. Já fazem 10 anos que isso ocorreu, mas eu recordo tudo tão bem como se tivesse acontecido há uma semana. Nunca encontrei uma explicação clara para o que aconteceu. Quem ouviu de mim o acontecimento, falou em sonhos acordados. Não posso especular mais nada, só tenho a certeza de que o horror existe com mistérios absolutos e aparentemente sem propósitos.

domingo, 7 de outubro de 2018

A COISA QUE URRAVA parte 1 (Contos de terror)

Eu tinha 25 anos quando fui morar sozinho. Acabara de sair da faculdade e conseguira um bom emprego num famoso escritório de advocacia. Lá eu ia aprender com os melhores e teria imensas chances de ser um grande advogado. Confesso que tudo vinha da assistência do meu pai e de uns tios que tinham uma larga tradição em direito na cidade. Talvez foi exatamente por isso, essa ajuda presente em todos os estágios da minha vida, que fez aumentar o meu desejo de ir morar sozinho. E num lugar que minha família tradicional e super protetora não aprovava. Eu ganhava um bom dinheiro, mas não era ainda suficiente para pagar o aluguel de uma casa num dos bairros mais nobres da cidade. Para mim era tranquilo viver numa pequena e simpática casa na periferia. Meus familiares foram contra, se ofereceram para ajudar no aluguel de uma moradia melhor, mais bem situada. Não aceitei. Disse que eles tinham me ajudado a vida toda e eu queria agora galgar os degraus da vida sem segurar na mão de ninguém. Eles já tinham feito muito. Eu era grato, mas queria mudar as coisas. “Esse emprego no escritório é representa muito, me deixem andar com minhas próprias pernas a partir de agora”, eu disse. Meu pai disse que entendia. Minha mãe fez um ar insatisfeito. Meu tio sorriu e deu uns tapinhas nas minhas costas. “Dá-lhe, garoto! Você sabe o que tá fazendo! ” Eu sempre tivera uma vida privilegiada, tinha reconhecido e dado valor aquilo tudo, era extremamente grato e achava que tinha recebido mais que o suficiente. A maior preocupação da minha mãe era porque eu estava indo para um bairro mal afamado, violento e repleto de traficantes. “Você não vê como as coisas estão? ”, indagava minha mãe com uma expressão que fazia a testa dela ficar toda franzida. Disse que estava decidido. As discussões acabaram e eu me mudei. Lembro que me sentia muito eufórico, senhor do meu destino. Levamos minhas poucas coisas para nova casa e eu comecei a me estabelecer. Digo nova casa, me referindo à novidade de morar sozinho, mas a casa em si era um tanto antiga. Não que estivesse caindo aos pedaços, era muito bem conservada por sinal. Simples e bem estruturada, pintura nova e tudo mais. Na primeira noite lá, eu fiquei acordado até tarde estudando alguns papéis, adiantando coisas do trabalho. Tomei uma taça de vinho e me deitei no carpete recentemente colocado. Recordo que a sala era o único cômodo devidamente organizado naquela primeira noite. Ouvi alguns urros estranhos, mas não dei atenção a isso. Estava muito cansado e acabei dormindo ali mesmo. A semana se passou e durante esse tempo eu dormi na sala. Depois do primeiro final de semana, deixei tudo em ordem e dormi a primeira noite no quarto, o quarto principal que ficava na parte frontal da casa. Ouvi mais claramente os urros, pouco antes de dormir. Escutava esses urros intercalados por latidos de cães, vozes de pessoas que passavam pela rua, sons dos poucos automóveis – era uma rua estreita, pouco movimentada; de maneira que não dei atenção. Na outra noite, chamei uns amigos para uma pequena festinha. Fui dormir às 4 da manhã um tanto leve por causa do vinho, mas lembro, claramente que nessa noite dei mais atenção aqueles sons estranhos antes de dormir.
            Então aquilo se tornou rotina. Sempre antes de dormir eu ouvia urros, gemidos agudos que se estendiam indefinidamente. Eu sentia que havia algo de estranho naquilo, mas sempre tentava ignorar. Uma noite sonhei que entrava na minha casa um monstruoso cão negro de olhos vermelhos. O bicho não latia nem rosnava, apenas emitia os urros que eu costumava ouvir quando deitava na cama à noite. Aquela coisa partia para cima de mim e eu me encolhia todo em atitude de defesa. Acordei num susto quase igual aquelas cenas que vemos em filmes quando o sujeito acorda em sobressalto, suado e ofegante. Tentei me acalmar e disse a mim mesmo que tudo não passava de um sonho. Foi aí que eu ouvi claramente aqueles urros que estavam terríveis como nunca naquele momento. Pela primeira procurei a fonte daqueles sons. Levantei, fui até a janela, abri as persianas e olhei para fora. A vista era bastante limitada: via meu jardim com algumas poucas plantas e parte da rua depois do portão. Tive a impressão de que o som vinha da rua, não era algo que estivesse trancando em algum lugar.
            Num dia pela manhã interpelei um vizinho sobre aquele barulho. Ele disse não ter ouvido nada. Estranho era que ele morava bem ao lado da minha casa. “Desde a primeira noite que dormi aqui que escuto isso”, falei. O sujeito me olhou confuso. “Talvez seja um cachorro de rua”, ele supôs fazendo um ar condescendente que indicava que era óbvio que ele não estava interessado naquele assunto. As noites seguiram e sempre antes de dormir aquilo me atormentava. Tentei de várias maneiras ignorar aquilo: leituras, programas de TV, celular, computador, mas minha mente sempre se voltava para aquele barulho infernal. Não queria muito admitir, mas aquilo causava algo estranho em mim e eu não sabia dizer o que era. Não era somente o som, pois o mesmo não era alto a ponto de impedir o sono. Ouvir aquilo, mesmo que em um tom menor já era exasperante. Digo isso com toda a certeza porque dormi nos outros quartos e a perturbação era a mesma. Mas o que era um persistente, intenso e curto incomodo – isso durava até eu conseguir dormir -  aumentou e, os quinze vinte minutos antes de dormir ouvindo aquilo, se prolongou para uma hora, duas... Três. Meu tempo de sono foi diminuindo. O tormento atrasando o sono e se intercalando entre ele, ou seja, eu demorava a dormir e depois acordava por causa dos urros e não dormia mais. Algo que de início não tinha acontecido

domingo, 30 de setembro de 2018

FÁBRICA DE FANTASMAS (Conto de terror)


Ela chegou sozinha à chácara. Foi dirigindo tranquila, conhecia bem a região, o caminho irregular, cercado de mato fechado. Frequentava o lugar desde criança. Tinha sido a casa de campo da família dela. Finais de semana divertidos que não podia esquecer. Churrascos, banhos de piscina, fogueiras a noite e até mesmo dormir fora da casa, num pequeno acampamento com irmãos e primos. Quando o tempo passou, veio o descuido da propriedade, todo mundo foi se desgostando do lugar. Vieram às casas de praia dos tios, dos amigos de seu pai que tomaram o tempo de lazer dos finais de semana. Nova empolgação: som de mar, piscinas maiores ao invés de céus estrelados e sons de grilos a noite. Então o pai comprou uma casa bem perto da praia e a chácara ficou esquecida. Era bom ir à praia com a família, mas ela nunca esqueceu do campo, da piscina modesta, das noites frias, do cheiro do mato e histórias assustadoras perto do fogo. Quando se tornou adulta comprou a chácara do pai. Não falava com o velho havia anos, mas foi uma negociação rápida e o preço muito bom. Era o mínimo que ele podia fazer depois de anos de desentendimento. Tinha resolvido os principais problemas da propriedade. Agora aquele era seu santuário particular. Vinha passar muitos finais de semana ali. As vezes sozinha. Não importava que lhe dissessem que era perigoso. Ouvira casos de invasões às propriedades próximas. Pessoas tinham sido roubadas, espancadas, estupradas. A violência exacerbada dos centros urbanos chegava nas regiões mais afastadas com rapidez espantosa. Mas não ia se atormentar com isso. Desceu do carro, abriu as duas imensas metades do portão de madeira, entrou no automóvel e o estacionou além dos muros. Fechou tudo e se sentiu em seu mundo. Seguiu pelo caminho cercado de flores e pitangueiras que formavam uma cerca viva. Se sentia feliz como não podia se sentir em lugar algum. Ela chegou até a porta da casa principal e parou ao ouvir algo. Olhou para trás. Será que havia alguém ali? Se sentiu observada. Ultimamente isso tinha sido comum naquele lugar. Sempre a sensação clara de que alguém estava ali observando tudo que ela fazia. Mesmo quando ia no banheiro, a presença não desvanecia. 
Estava preparando um lanche na cozinha quando o som de pancadas a fez para súbito. Ficou ouvindo, olhos no ar. Foi até a porta da cozinha e observou. Diante dela somente as árvores, o som distante dos pássaros e do vento. Era um dia claro de sol. Tudo na mais perfeita normalidade não fossem aquele barulho. Voltou a cozinha, terminou de preparar o sanduíche e foi até a varanda. Sentou-se e ficou comendo enquanto observava a paisagem à sua frente. Haviam duas mangueiras frondosas, pés de goiaba, acerola e as belas muretas feitas com as pitangueiras. Lembrou que em determinada época do ano – não lembrava o mês – quando havia pitangas maduras, o cheiro era uma coisa soberba. Terminou de comer o sanduíche e bebeu o ultimo gole de refrigerante. Acendeu um cigarro e ficou fumando, se sentindo ainda mais relaxada. Aquele era seu reino, suas melhores lembranças de infância, seu porto seguro. Na chácara aquilo nunca acontecera. Sim. Sabia que isso era mais por causa da quantidade de pessoas do que pelo local em si, mas não importava. Deu mais um trago no cigarro e se sentiu zonza. Que sensação mais relaxante, pensou. E as coisas ainda estavam apenas começando. Mais tarde pretendia ter uma longa conversa com a garrafa de vinho que trouxera. Iam ser só ela, a bebida, os cigarros, as boas lembranças... e aquele homem que vinham agora cruzando metade da chácara vindo ao seu encontro? Ela fez um movimento a frente com a cabeça e encarou o homem que vinha caminhando e sumiu diante dos seus olhos. Agora tinha sido claro. Não fora uma pancada a esmo, mas tinha visto mesmo o sujeito. Apagou o cigarro no cinzeiro, pegou o prato, o copo e entrou em casa.
No quarto tirou toda a roupa e ficou se olhando nua no espelho. Provavelmente a estavam observando, ela pensou. Não era de se espantar. Mesmo quando era criança passava por isso. E isso fora o princípio de tudo. Colocou o biquíni e saiu.
Saiu da piscina, sentou na borda e inclinou a cabeça para trás de modo que pudesse sentir ainda melhor o sol. Era pouco mais de meio dia, um sol não muito aconselhável, mas tudo bem. Não era de exagerar. Tinha os olhos fechados, sentindo os raios de sol lhe aquecendo a pele e percebendo a presença deles todos ali. Agora eles tinham perdido a timidez. Se acercavam dela sem receio nenhum. Tinha certeza de que se abrisse os olhos podia ver a todos. Mas não fez isso. Pulou novamente na piscina e ficou nadando de uma borda a outra. Depois saiu, se envolveu na toalha, acendeu mais um cigarro e ficou fumando sentada numa das imensas cadeiras inclinadas. Olhou e viu alguns deles ao longe. Ou seria sua visão que estava lhe pregando peças? Apertou os olhos na direção em que julgava que eles estavam. Sim, havia alguns ali. Não precisava ter medo. Tivera medo muitas vezes na vida. Aqueles outros, sim, tinham lhe proporcionado medo. Não mais. Fazia tempo que ela deixara de ser uma garota indefesa. O último engraçadinho tinha levado um tapa na cara, na frente de todo mundo.
Depois de uma longa e refrescante ducha, ela armou a rede na varanda e dormiu como se estivesse deitada em nuvens. Aquilo sim, um pequeno pedaço do paraíso. Ela sozinha, no seu lugar favorito no mundo inteiro. Acordou no fim da tarde e continuou deitada, observando a paisagem. Não sabia dizer porque, mas havia algo de melancólico na própria felicidade. Agora com a luz diminuindo, ficaria ainda mais fácil vê-los. Tudo isso era um peso. Mas tudo bem.  Com um impulso do pé na parede, começou a se balançar e logo lembrou que nunca dormia de rede em casa. Ali tudo, bem, mas em casa dava uma sensação ruim. Era na rede que ele a atacara muitas vezes. Ele e outros. Felizmente na chácara tudo ficava anulado. E não era apenas porque na infância se sentia segura ali, mas porque a justiça era feita. Levantou-se num impulso, foi até a sala, pegou o vinho, os cigarros. Depois foi até a cozinha. Cortou um pedaço de queijo coalho. Tira gosto perfeito. Fui até a varanda e ficou bebendo, comendo e fumando. Depois de um tempo, ligou o som. A música tomou conta do ambiente. Escurecia. A melhor hora estava chegando.
Não estava nem embriagada, mas já via eles chegando. Eles ficavam parados no gramado, entre a piscina e a varanda, diante dela. Simplesmente a observavam com olhar resignado. Não podiam fazer nada. Talvez a estivessem olhando com ódio, mas o que poderiam fazer? Sorriu.
- Agora vocês não podem mais fazer nada com ninguém.
Quem dera existisse alguém como ela quando era uma criança. Não teria problema seu pai ter entrado na lista. Alguns tios, primos. O desgraçado do vizinho. Olhou para o grupo parado diante dela. Contou-os um por um. Recordava suas histórias enquanto fazia isso. Foi então percebeu que faltava um. Maldição! Será que tinha escapado. Não, não era possível. Ergue-se num impulso e correu até a residência do caseiro. Era uma casa pequena e simples. Ninguém morava lá no momento. Só servia para guardar tranqueiras e... Eles. A porta estava devidamente trancada. Abriu-a. Entrou, acionou as luzes. O cheiro era insuportável. Era melhor tomar uma resolução antes que aquilo chamasse a atenção de alguém, afinal, nunca se sabia. Mas isso não era o mais urgente. Caminhou por entre os corpos e logo o encontrou. Estava num canto. Se tinha ido até ali, obviamente que ainda estava vivo. Pegou o imenso facão na prateleira. Passou a ponta do instrumento no peito do homem. O sujeito estrebuchou. Ali estava a comprovação. Morto de maneira nenhuma. Ele tinha as mãos e os pés amarrados, uma fita adesiva na boca, sangrava de um enorme ferimento na cabeça.
- Meu Deus. Já pensou se eu tivesse te deixado aqui desamarrado. Pensando que você tinha morrido. Ai, ai. Capaz de você sair e me causa problemas.
O homem fez barulhos tentando falar alguma coisa. Certamente um pedido de clemencia.
- Você é duro de morrer, não? Dois dias aqui, ferido, sem beber um gole d’água.
O outro continuava tentando dizer alguma coisa.
Ela foi e tirou a fita adesiva.
- Por favor, moça, não me mate... Nunca fiz aquelas coisas que a senhora falou.
- Sabia que dificilmente alguém acredita nas menininhas quando elas contam o que vocês fazem.
- Mas eu não fiz nada com menininha alguma...
- Minha fonte é segura.
- Pelo amor de Deus...
- Chega de conversa – ela gritou. – Você já devia ter virado fantasma. Não te vi lá com os outros... Mas vou já resolver isso...
O homem começou a gritar enquanto ela ergueu o facão e o desceu com toda a força... Uma vez, duas vezes, três vezes...
E ele parou de gritar. O sangue agora saindo em profusão do seu pescoço.
- Agora vamos ver em quanto tempo você aparece lá com os fantasmas dos outros tarados.

domingo, 23 de setembro de 2018

O AMIGO IMAGINÁRIO (Conto de terror)

Todo mundo já ouviu falar em amigos imaginários. Muita gente já teve um. É coisa bastante normal, saudável, desde que tenha certos limites. Fui levado a pensar que tivesse um também. Lembro bem o quanto me surpreendi quando ouvi os adultos dizendo que eu tinha amigo imaginário. Para mim ele era real. Aquelas afirmações me confundiram. Disse que eles estavam errados, mas ele insistiram e disseram que estava tudo bem. Acontece que não era um amigo imaginário. Não estava louco, nem estou. Eu era diferente apenas, sonhador e recluso. Meu amigo era real. Eu não podia ter ou demonstrar certezas para ninguém. Não possuía maturidade, um discernimento claro, e acabei me deixando levar pelas conclusões dos adultos. Se eles fossem mais atentos, teriam percebido que meu amigo não era nada imaginário. Não era coisa da minha cabeça como achavam. E acho que isso foi a razão para as desgraças que vieram, para tudo que veio depois. E afirmo, inicialmente, a culpa não foi minha. Gupta, me apareceu logo após virmos morar ali. Ele aparentava ter sete anos de idade como eu, mas quando eu o indaguei uma vez a cerca de idade, ele disse que eu não acreditaria se falasse quantos anos tinha, que era mais velho que qualquer adulto que eu conhecia. Eu achava que ele era tão real quanto qualquer outro garoto da rua. Como disse, foram os adultos que falaram que ele não existia. Então depois disso comecei a desconsiderar as coisas que ele dizia, o que fazíamos juntos. Para mim, nossas pequenas travessuras passaram a ter ainda menos importância, exatamente porque não era para valer. Tudo fazia parte do pacote da imaginação. Uma vez falei para Gupta sobre a opinião dos adultos e ele disse que era melhor assim. Nós nos ocupávamos principalmente em explorar. Perto da nossa casa havia uma velha fábrica abandonada e um razoável trecho de floresta. Eu morava nos limites da cidade e além da nossa casa, as vias se abriam em estradas e descampados. Era um tempo bastante diferente dos atuais. Não havia a violência como hoje, ainda mais numa zona de transição como aquela. Isso permitia que eu tivesse uma liberdade incrível. Um mundo de possibilidades que eu compartilhava com meu amigo estranho e camuflado dos adultos. Meus pais pensavam que eu era reservado. Um garoto por demais reservado, diferente dos demais. Dessa forma, minhas horas de vadiagem com meu amigo eram mais amplas do que deveriam ser. Minha família conhecia todo mundo naquela localidade, tinha muitos parentes por ali e por isso não se preocupavam. Sabiam que eu estaria na fábrica abandonada ou na floresta, caminhando ao lado do meu amigo inexistente. Gupta e eu fazíamos pequenas travessuras. Jogávamos bolas de gude em janelas, produzíamos pequenas fogueiras, caçávamos pequenos lagartos, pássaros e essas demais coisas que os meninos dessa idade gostam de fazer. Foi ele, sim, ele que começou com as pegadinhas mais pesadas. Convencido de que todo era uma fantasia, me deixei levar. Primeiro foram as bombas de São João que nós usamos para fazer pequenas demolições. Colocávamos as bombas nos pequenos buracos das paredes da fábrica, acendíamos, corríamos até chegar num lugar seguro e parávamos para ver a explosão produzir buracos enormes nas paredes. Depois vieram os pequenos furtos. A gente pegava trocados em toda e qualquer oportunidade. Depois gastava tudo em balas. As maldades com os animais pioraram. Enforcamos um gato um vez e depois tentamos colocar fogo em um cão usando gasolina. Gupta disse que tudo aquilo era uma preparação para fazer aquilo com um garoto. Eu olhei para ele e fiquei espantando em como eu era capaz de pensar naquilo. Se Gupta era apenas fruto de minha imaginação eu era um garoto mau pra valer. Ou então, Gupta era uma criança terrivelmente perturbada que não queria estar sozinho. Eu fiquei em dúvida e lhe respondi que não, que não era boa ideia. Ele passou dias e mais dias me perturbando com aquilo. Minha mente virou um turbilhão. Eu não dormia direito, tinha pesadelos e pensava: Tenho que apagar Gupta da minha mente. Tentei fugir dele, mas o encontrava na volta da escola, nas brincadeiras na rua e até mesmo no meu quarto. Estava deitado na minha cama olhando os aviõezinhos pendurados no teto, quando ele entrava súbito me chamando pra sair. Nessas horas minha mente virava um turbilhão. Ele estava ou ali ou era apenas fruto da minha imaginação? Numa manhã eu o encontrei na fábrica abandonada. Ele mesmo viera com Geninho e os apetrechos: gasolina e isqueiro. Eugênio ou Geninho, era um moleque que morava em frente a minha casa. Umas poucas vezes tínhamos brincado juntos. Inventamos de fazer uma fogueira. Ficara combinado que eu iria aspergir gasolina no garoto e Gupta usaria o isqueiro. Fiquei ali jogando coisas nas chamas, torcendo para que minha mente ou meu amigo não fizessem nada daquilo. Alguns minutos se passaram e eu já dava por resolvido aquilo quando ouvi as risadas de Gupta. Ele derramara todo o combustível em Geninho. O garoto, assustado, olhava para mim sem entender nada. Num impulso irracional, acendi o isqueiro e encostei no garoto ensopado de gasolina. O moleque acendeu e começou a gritar. Não foi nada parecido como nos filmes em que vemos um sujeito em chamas andando de um lado para outro balançando os braços. O garoto correu e ficou tentando abafar as chamas na parede mais próxima. Depois caiu no chão, rolou mais algumas mais vezes até o fogo se apagar. Isso não durou mais que um minuto. As chamava se foram, o garoto continuou gemendo por alguns instantes e depois parou. Corri para minha casa. Mas não demorou para que tudo fosse descoberto. Falei inúmeras vezes que a culpa era de Gupta, mas claro que ele não foi encontrado para receber o castigo por sua parcela de culpa. Como tinha apenas sete anos, os procedimentos foram outros. Fiz muita terapia, mas não me livrei do estigma de assassino. Mesmo que mudássemos de lugar, sempre alguém descobria meus feitos e tudo vinha à tona. Com o tempo acabei aceitando meu destino de assassino cruel e segui meu caminho. Gupta e eu voltamos a ser parceiros. Todos os dias eu agradeço a esse demônio que até hoje ajuda nos meus crimes. Tivesse alguém dito que essa coisa era uma criatura maligna real, eu não seria esse assassino cruel que sou hoje.

domingo, 16 de setembro de 2018

A BONECA (Conto de terror)

Em uma época da infância achei que estava enlouquecendo. Vivi uma situação em que não pude contar com ninguém. Somente eu e o mais absoluto horror na minha própria casa. Isso me fez temer pela minha vida. Encarei sozinha, um terror que pouca gente sequer ousar crer. Somente após alguns anos superei os acontecimentos a ponto de poder falar sobre o mesmo. Só não suporto ver ou ouvir historias semelhantes e não gosto de bonecos, bonecas. Isso desde os nove anos de idade. Não, não sonhei. Tão certo quanto respiro, tudo aconteceu e eu agradeceria a menor possibilidade de que eu tivesse sonhado com tudo. O tema recorrente das narrativas de terror, brinquedos possuídos, ainda mais no cinema, sempre me chama muito a atenção, mas isso provoca uma repulsa irresistível. Não que não me sinta atraída por histórias assustadoras. Como muitas pessoas, me empolgo em ver filme ou ler algo de tom sobrenatural, só essa temática, à parte, me é absolutamente execrável. Creio que saí incólume da experiência. Ficou apenas essa sequela: não suportar histórias de bonecos, bonecas enfeitiçados. Eu tinha oito anos. Meus pais trabalhavam fora o dia todo. Minha irmã, mais velha que eu sete anos, era distante, vivia suas aventuras de adolescente rebelde. Então eu vivia a minha infância sozinha. Não me importava muito e acho que se alguém me dissesse que eu era solitária naquela época, eu ficaria surpresa. Como toda menina, eu gostava de brincar com bonecas. Tinha várias. Talvez uma tentativa de compensação dos meus pais que, ganhavam um bom dinheiro, mas viviam sem muito tempo pra mim. Foi minha mãe que trouxe a boneca. Disse que seu nome era Vivian. Não questionei que a boneca já tivesse um nome. Ela era diferente das demais. Toda feita de pano, costurada a mão. Foi paixão a primeira vista. No mesmo dia, deixei todos os brinquedos de lado, e fiquei brincando só com Vivian. À noite meu pai me pôs na cama e eu abracei a minha nova amiga com bastante alegria. Lembro que meu pai perguntou: - Qual o nome dela? - Achei muito atencioso da parte dele perceber que a boneca era nova. - Essa é a Vivian - eu disse. - Onde você arranjou ela? - Achei estranha a pergunta e disse que tinha sido minha mãe, claro. Ele deu de ombros, me beijou na testa, desejou boa noite e se foi. Ele era um homem muito atencioso, apesar de quase não ter tempo para mim. Eu recordo que apertei Vivian contra meu peito e senti ela quente e pulsante. Tive pesadelos naquela noite. Algo que não lembro mais, depois desses anos todos. Sei que isso foi se repetindo. E uma noite acordei e vi que a boneca não estava comigo na cama. Vivian estava sobre o criado mudo e seus olhos pareciam acesos. Fiquei absolutamente paralisada e não tive coragem de pedir ajuda ou sair dali. Cobri o rosto com o lençol e depois olhei por uma pequena brecha. A boneca continuava ali e seus olhos pareciam ainda mais brilhantes. Eu tremia toda, dos pés a cabeça. Chorava, mas sem emitir um único gemido. Fiquei acordada até não poder mais. Sempre fechando e abrindo os olhos para conferir o pavor ali, manifesto no meu brinquedo. Repeti parte das rezas que tinha aprendido e dormi de cansaço depois de algum tempo. No outro dia fiquei pensando em como me livrar da boneca, mas na minha timidez de criança não tinha coragem de fazer algo mais radical como jogar a boneca no lixo ou destruí-la. Acreditava que mamãe ficaria brava comigo por isso, era certo que ela não acreditaria naquela história de boneca de olhos acesos. Bruna, minha irmã quando estava em casa, passava o tempo pendurada no telefone e simplesmente ignoraria qualquer pedido de ajuda. Ainda assim tomei uma providência que julguei eficiente. Joguei Vivian na garagem, dentro da mala de ferramentas de papai. Uma mala com fechos que eram difíceis de abrir. A noite acordei pela madruga e vi a boneca olhando para mim. E então por um mês eu e a boneca jogamos aquele jogo: Eu a escondia nos mais diversos cantos e ela voltava pra o meu quarto e me despertava com seus olhos terríveis. Eu sempre sentia uma presença ruim no quarto e quando dormia, tinha sempre pesadelos. Comecei a ir mal na escola e a ficar doente. Bá, a empregada da minha casa, uma espécie de segunda mãe pra mim, me olhava com preocupação. - Hoje ela quase não comeu nada, D. Marta - dizia para minha mãe. Eu sabia que tudo era culpa da boneca e que nenhum adulto acreditaria em mim. Uma vez sonhei que Vivian tinha matado toda a minha família. No sonho eu chegava até a sala e via os corpos de meus pais, da minha irmã e de Bá, amontados, despidos e ensaguentados. Aquela era uma imagem por demais cruel para simplesmente brotar da minha imaginação. Hoje sei disso. Na época eu apenas senti pavor. Eu acordei e ouvi a voz do que quer que estivesse naquela boneca. A mensagem: eu vou matar você. Nesse dia corri e fui para o quarto dos meus pais. Como eu nunca havia feito isso, papai - acordado àquela hora - encarou como algo normal. Apenas disse que ia deixar eu ficar com a condição de que isso não se repetisse. Mas o medo fez nascer também a determinação. No outro dia, num domingo a tarde, eu levei Vivian até o quintal, derramei álcool nela e pus fogo. Aquela coisa se contorceu e jogou um pedaço de pano flamejante que atingiu meu pé. Fez uma queimadura pequena, mas profunda. Ainda hoje tenho a marca. Dormi muito bem aquela noite. Esperei minha mãe perguntar sobre a boneca, mas ela sequer percebeu. Na verdade, ela parecia mais distante naqueles dias. Havia tantos brinquedos, só na minha mente de criança que minha mãe ia sentir falta de uma boneca específica. Logo perdi o interesse por bonecas e bonecos. Guardei-os todos numa caixa sob olhos espantados dos meus familiares. Só me distraia com livros e os pequenos pôneis de brinquedo que enfeitavam minha estante. Disse pra minha mãe que não queria mais brincar com bonecas. Ela nunca questionou meu desejo e me encheu de livros e outros pôneis. Anos depois quando contei para ela essa história, ela disse que lembrava da boneca, mas que não tinha me dado. Também sabia que não havia sido meu pai, mas acreditava que tinha sido a Bruna ou a Bá. - Foi a senhora que me deu, tenho certeza - falei. Ela disse que era uma loucura, pois lembrava que na época que tinha visto a boneca de pano, fora logo depois de ficar mais de uma semana sem vir para casa, pois tivera sérios problemas com papai e havia ido pra casa da irmã.