Apresento aqui os cinco melhores livros de terror que li na vida. É uma sugestão, mas também uma clara homenagem a essas grandes obras que me divertiram e influenciaram.
A COISA - Stephen King
Esse dispensa apresentações. A obra que segundo o próprio autor, é o seu melhor livro. Sem dúvida um dos romances do gênero mais incríveis. Um grupo de crianças luta contra um ser sobrenatural que assume a forma dos medos pessoais. Tudo acontece em Derry, a famosa cidade assombrada de King. Agora o grupo, depois de tantos anos, tem que voltar a lutar contra o ser sem nome.
O ILUMINADO - Stephen King
É, mais uma vez o mestre. Ele realmente é o rei. A história assombrada do hotel Overlook onde um homem vai enlouquecendo e ameaça a família. É impossível ler e não se imaginar naquele lugar com suas histórias terríveis.
HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS - Edgar Allan Poe
Poe não pode ficar fora de nenhuma coleção de livros de histórias assustadoras na minha opinião. Ele tem várias coletâneas. A que mais me marcou foi esta, que inclui o tenebroso conto Gato preto. Se você ainda não leu, precisa ler.
A FLORESTA DOS SUICIDAS - Jeremy Bates
E que tal um livro recente? Jeremy Bates conseguiu me surpreender e deixar angustiado nesse livro. Um grupo de turistas americanos - tinha que ser, né - decide passear pela floresta de Aokigahara, a floresta mais assombrada do mundo, conhecida pelos seus inúmeros suicídios anuais. Logo eles se perdem e percebem que algo maligno os cerca. O que chama a atenção é que Bates escreve algo verossímil, tão convincente que aceitamos qualquer explicação para o que espreita o grupo na floresta.
O EXORCISTA - William Peter Blatty
Outra obra que dispensa apresentações. Como essa lista é bem básica, não posso deixar de colocar esse livro. Todo mundo que se interessa por terror deve ter visto o filme. O livro, bem, esse vai lhe trazer o terror de uma maneira mais profunda. As discrições da possessão na garota Reagan são incríveis.
quinta-feira, 27 de dezembro de 2018
domingo, 16 de dezembro de 2018
SÓCIOS INFERNAIS (Conto de terror)
Ele acorda no meio da
noite extremamente assustado. Tem a impressão imediata de que há algo errado.
Se ergue de seu leito só de papelões. Não tivera tempo para conseguir uma cama
de verdade. Claro que não. Agora tem que conferir tudo, talvez até pegar em alguma
arma para se defender. Olha em volta, mas com a limitada iluminação das luzes
da rua é difícil ver alguma coisa. Fica parado pensando se deve ou não acender
a lâmpada do quarto. Chamar a atenção à toa ou se expor tão subitamente, não seria
nada perspicaz. Espera mais uma pouco. Não escuta nada além dos sons comuns da
noite. Tudo normal. E ela? Estaria bem? Melhor conferir. Eram somente os dois
naquela função. Mas era bom também ver a guarda, a defesa, o bicho lá embaixo.
Levanta-se devagar no escuro. Tinha todo tipo de inimigo. Anda devagar, fazendo
o mínimo de barulho possível. Acha melhor pegar a pequena lanterna, a que é um
chaveiro, excelente para ocasiões como aquela. Ligar a lâmpada seria mesmo
imprudente. Tateia no cantinho da parede. É lá que colocou as coisas. As armas,
faca, a pistola. Acha as chaves, onde está a pequena lanterna, mas isso faz
barulho, coisa que o irrita. Aperta as chaves todas juntas na mão para não tilintarem
mais. Acende a pequena lanterna e se espanta por iluminar muito. Mas claro, nem
devia se admirar. Estava muito escuro, qualquer coisa faria uma enorme
diferença. Até um fósforo. Ilumina a metade do quarto, movimenta devagar o foco
em direção a ela. Com cuidado, se estiver dormindo não gostaria de desperta-la.
A borda da luz encontra parte do corpo deitado, caído lá. Que bom que não foi o
rosto logo, certamente ela iria acordar com a luz nos olhos. Ilumina somente até
seu ventre. Para e observa o movimento, a respiração regular. É uma bela visão,
sua pele tenra, seu corpo. Apenas uma calcinha branca. Inocente, pura, o que a
fazia perfeita para o propósito. Fica um tempo observando a barriga dela
subindo e descendo num ritmo próprio. Isso era bom. Não achava que ela
estivesse fingindo. Provavelmente dormira mesmo. Tinha passado por coisas
terríveis e outras piores viriam ainda. Estava se sentindo absolutamente sereno
com esse pensamento quando o barulho lá embaixo chama sua atenção. Muda rapidamente
o foco da lanterninha, se dirige até a porta com passos silenciosos e mais
rápidos possíveis. No caminho apanha a arma. Apesar de confiar na guarda, não
deve descer desprevenido. Cruza o corredor, chega as escadas, vai descendo pé ante
pé com ansiedade e determinação. Pode ser a polícia, algum parente da menina. Um
anjo? Vai haver sangue, pensa. Mas já está decidido. Há muito tempo, desde que
adentrara àquela vida. Trata de erguer a arma. Confiava na guarda, mas, nunca
se sabia, não era? Se aproxima da sala com cautela. Ilumina os cantos, a porta
da frente. Tudo está em ordem. Se sente relaxado totalmente desde que acordara.
Tudo está em ordem. A porta devidamente trancada. E a guarda operante como sempre.
O imenso demônio animalesco, metade cão, metade réptil. Um presente das trevas,
um auxiliar valoroso. Por vezes ficava fora de controle e arrancara dedos de um
ou outro, mas era normal. Qualquer cachorro mordia o dono uma vez ou outra, que
se podia dizer de uma criatura dos infernos? Fazia parte de todo o pacote negociado
com o próprio Lúcifer. Vidas e sangue para ele, exatamente como a menininha sequestrada,
presa lá em cima. Em troca de poder, boas vendas de drogas, dinheiro, crias do
inferno – que estranhamente duravam só um mês, mas facilmente substituídos – e todas
as coisas que acompanham os pactos que se faz com as trevas. Até mesmo uma noite
de vigília com uma sequestrada naquele barraco imundo como aquele. Amanhã seria
melhor, pensa enquanto passa a mão na criatura. Uma pessoa comum morreria do
coração só em ver aquela besta.
domingo, 9 de dezembro de 2018
DEMONS IN THE SKY (Conto de terror)
Comprei
a chácara por um preço realmente incrível. Depois de tudo que houve, lembrei
daquelas histórias repetidas à exaustão de pessoas que compram casas assombradas
por preços inacreditáveis. Mas a chácara não era assombrada. Nunca foi. O
problema é que recebia visitas. Estranhas e aterrorizantes visitas. E isso não
era exclusividade do meu recém adquirido imóvel, como viria a descobrir logo
depois. Fui com meus familiares, amigos e seus parentes para a chácara a fim de
aproveitar o final de semana. O primeira vez na minha propriedade, conquista de
anos e anos de esforço, trabalho. Chegamos por volta do meio dia, nos
estabelecemos e fomos cuidar do almoço. Foi pura descontração com o churrasco
assando e as cervejas consumidas alegremente. Havia ali uma piscina rudimentar
onde combatemos bem o calor. E assim seguiu o dia, horas de pura descontração
em que esquecemos da rotina que nos cansava." Fim de tarde, uma comida
leve e mais algumas cervejas. Veio a noite e as crianças foram dormir, exaustas
de tanto se divertir. Ficamos tomando algumas cervejas e conversando sobre
amenidades. Depois de algum tempo ficamos em silêncio ouvindo o som dos grilos
e cigarras, olhando o céu estrelado – muito diferente do céu visto na cidade – e
alguns até começaram a cochilar em suas cadeiras de praia. Eu já tinha tido a
resolução de convocar a todos para nos recolher quando vi um clarão surgir por
detrás da serra que contornava o horizonte, para além do mato que circundava a
chácara. “Que é isso gente?”, indagou Andréia, minha esposa. Nossos amigos
voltaram suas atenções ou despertaram de seus cochilos. Todos olhamos e vimos
um objeto oval, gigante e luminoso se aproximar. “Isso é um disco voador, minha
gente”, disse Marcão. Independentemente do que fosse, eu não queria ficar ali
para descobrir. “Vamos entrar, pessoal, vamos entrar”, gritei, segurei na mão
de Andréia e corremos para a casa. Os outros me seguiram, mas não sem antes
gritarem e tropeçarem em cadeiras e uns nos outros. Chegamos até a casa, uns
mais assustados que outros. Tomei a frente e fiquei com a porta entreaberta
vendo o que era aquela coisa. Marcão, Érico e Naldo se postaram próximos para
olhar também. O restante, tomado de medo, não quis ver. Foi então que a
bizarrice tomou conta da minha propriedade diante de meus olhos tão pouco
acostumados a coisas anormais. Aquele clarão chegou sobre a chácara e se desfez
em vários pedaços que caíram como flocos de neve. E cada ponto luminoso daquele
se transformou numa criatura esbranquiçada, desforme e indescritível. Os que
caíram na minha propriedade ficaram andando de um lado para outro, parecendo
fungar como animais, examinando as coisas ao redor, ora caminhando ereto como
homens, ora rastejando como bichos. Olhei para meus amigos e vi a expressão de
espanto e horror em seus rostos e soube também que eu devia estar igual. Os que
tinha ficado afastados, vieram espiar o que acontecia, mas se voltavam
assustados repetindo a pergunta: “Que é isso, meu Deus?!” Continuei olhando,
analisando a situação. Se aqueles monstros viessem em nossa direção, teríamos
que pegar as crianças, correr para nossos automóveis e fugir o mais rápido
possível. Falei disso para o grupo, mas eles mal pareceram me ouvir. Marcão foi
o único que acenou com a cabeça. “Será que são extraterrestres? ”, indagou
Naldo. “Não! Vieram naquela espécie de nuvem brilhante e caíram se espalhando
por todos os lados”, falei. “É claro que são extraterrestres”, disse Manuela
depois de uma rápida olhada. “Vamos embora, gente”, alguém pediu choroso.
“Essas coisas são demoníacas”, falei e no meu íntimo tudo corroborava para
aquela afirmação. “Extraterrestre vem em nave, não voando no ar como nuvem! ” E
então nesse momento as criaturas fizeram um barulho conjunto, se juntaram e
correram saltando os limites da propriedade. Pareciam um grupo de bichos
fugindo num estouro de manada.
Ficamos acordados até de manhã.
Deixamos apenas as mulheres dormirem e fincamos em vigília, preparados para fuga,
a madrugada toda, tomando café, falando sobre o incidente e olhando pela
janela. Não houve mais sinal algum daquelas coisas. Fomos embora de manhã
exaustos e em silêncio. Demorei um mês para voltar à chácara e quando o fiz,
fui antes nos meus vizinhos indagar sobre o ocorrido. Na primeira visita
encontrei um senhor que não se espantou nem um pouco com minha descrição. Ele
disse que conhecia bem o fenômeno. “São demônios que caem do céu. Estão por
aqui só de passagem, não precisa ter medo. Apenas evite estar à céu aberto
entre meia noite e meia noite e dez. Antes e depois não tem perigo. Todo mundo
por aqui já viu esse negócio. É só tomar cuidado”, narrou o homem com uma calma
espantosa. Outra pessoa, de ares religiosos, travou rápida conversa e concordou
com o velho. “São as potestades do ar descritas na bíblia”, explicou. Depois
voltei a frequentar o lugar para praticar meu lazer. Alertava meus novos
visitantes sobre o acontecimento – que não acontecia em todas as ocasiões – e
as vezes mostrava, na segurança da minha varanda, aqueles demônios caindo do
céu.
domingo, 2 de dezembro de 2018
FAMOSOS (Conto de terror)
Rafael Silva, conhecido na internet como
Ra Fear gozava de certa fama com os vídeos que ele e um amigo faziam sobre
lugares supostamente assombrados. Sua mais famosa filmagem, o casarão da água
verde, tinha pouco mais de duzentos mil acessos. Isso era suficiente para o
rapaz pousar de subcelebridade entre os conhecidos sem maiores questionamentos.
Rafael estava sempre procurando lugares supostamente assombrados para explorar.
Junto ao amigo, Ednardo, conhecido como Eddie. Além do casarão da água verde,
aventura mais dispendiosa da dupla, eles tinham ido a uma casa onde
supostamente vivera um canibal, cujo fantasma diziam aparecer em noites de
sexta feira. Invadiram um cemitério tarde da note para filmar, visitaram as
ruínas de um hospital psiquiátrico, e uma chácara abandonada com a fama de
abrigar outros tipos de duendes e almas penadas. Além de meia dúzia de outros
lugares famosos por aparições. Rafael e Ednardo, de verdade, nunca registraram
de fato algo incrível, mas compensavam isso com um programa de efeitos
especiais. Nada muito exagerado para não ficar óbvio a simulação, mas sombras
sutis, silhuetas quase indetectáveis no fundo do vídeo além de efeitos sonoros,
garantiam um material curioso e com público certo na quase infinita Surface. O
último trabalho deles, porém contém algo escabroso, ainda não explicado
totalmente. E não é fruto da engenhosidade ou criatividade dos rapazes, isto é
certo. Rafael e Ednardo, ou, como gostavam de ser conhecidos, Ra Fear e Eddie,
pegaram seus equipamentos, suas motos e se aventuraram a ir fazer imagens de
uma pequena residência abandonada nos limites da cidade. Diziam que a casa
tinha fantasmas e era assombrada desde que fora construída. A fama, explicavam
os rapazes no início do material encontrado, se dava porque que o lugar fizera
parte de uma imensa fazenda do século XVII que tinha inúmeros escravos. Segundo
os rapazes, que fizeram razoável pesquisa sobre o lugar, a casa ficava
justamente onde era o pelourinho. Onde incontáveis escravos haviam encontrado a
morte através de suplícios terríveis. A reconstituição, baseada no material dos
rapazes, indica que eles chegaram ao local por volta das dez da noite. Fizeram
uma prévia do ambiente, filmando diversas panorâmicas e depois começaram a
fazer imagens do perímetro da casa. Nesse momento percebemos os rapazes falando
de barulhos inaudíveis (que se supõe seriam introduzidos na edição do material)
e repetindo frases de efeitos. Nesse momento fica claro que Rafael e Ednardo
produziam filmagens básicas para depois manipular à vontade no computador.
Depois segue-se imagens no interior dos restos da casa. Com excelente material
de iluminação podemos ver os detalhes dos cômodos, o que causa estranheza são
os movimentos do cinegrafista. São súbitos, repetidos, simulando o tempo todo
um cinegrafista descuidado que se move espontaneamente. Em dado momento se
escutam imprecações ininteligíveis e Eddie, que estava filmando, baixa a câmera
e conversa nervosamente com Ra Fear. – Caralho, tem alguém aqui, cara – ele
fala. E o que acontece depois não parece nenhum pouco simulação. Nenhuma imagem
mais é captada com propósito. O rapaz simplesmente corre com o equipamento na
mão sem se preocupar em registrar coisa alguma. Ouvimos o som do vento, dos
passos e gritos assim como uma voz grave, dando ordens monossilábicas. Algo
semelhante a alguém guiando um animal. Em nenhum momento achamos que aquilo é
algo feito para impressionar. É um material cru, descuidado de verdade e
perfeitamente verossímil. Depois de outros gritos a câmera vai ao chão e fica
filmando a relva por duas horas seguidas. Ao fundo ouvimos os gritos dos
rapazes, urros e depois apenas o som da noite. Rafael e Ednardo foram
encontrados por um agricultor no outro dia com as gargantas dilaceradas. Apesar
do registro do material em vídeo, ainda não se tem ideia do que casou suas
mortes. Teorias exageradas da internet surgiram dizendo que havia um feitor que
costumava degolar os escravos. Seus dias tinham chegado ao fim quando dois
negros o capturaram e lhe deram o mesmo destino. Agora no além, continuava a
luta onde contendores degolavam uns aos outros eternamente. E quem invadia
aquele local estava sujeito à guerra entre torturador e escravos. Alguns meses
depois o material dos rapazes caiu na rede e a visualização do vídeo atingiu
cerca de mais de oitocentas mil visualizações.
domingo, 25 de novembro de 2018
O QUE ACONTECEU COM CARLA FILARDIS? (Conto de terror)
Eu
sempre fui fascinado por essas histórias sobrenaturais, acreditava num outro
mundo. Devo ter gastado incontáveis horas vendo filmes, lendo livros e vendo
documentários sobre o assunto. De Alan Poe à Stephen King, de clássicos como o
Bebé de Rosemary ao gore de Jogos mortais. Para mim o terror e o macabro sempre
tiveram o encanto desde os tempos de criança. E foi com uma alegria impar que
fomos morar naquela casa com fama de mal-assombrada. Eu e minha esposa que,
embora não fosse tão entusiasmada como eu, partilhava o gosto por histórias
assustadoras. Durante os primeiros dias não notamos nada de anormal na
residência, mas com o passar das semanas, começamos a perceber vozes na calada
da noite. Eu e minha esposa ficamos bastante excitados e nenhum pouco temerosos.
Embora eu soubesse que o sobrenatural tivesse fama de perigoso, para mim, as
pessoas só se davam mal nos filmes e livros. Quem na vida real conhecia alguém
que morrera vítima de uma alma do outro mundo? Mas eu estava desprezando outros
fatores... e disso me arrependeria depois. Então os fenômenos foram se
intensificando. Vozes, passos e portas batendo até certas horas da noite. Após
isso, o silêncio e mais nada. Eu tinha ido viver ali sabendo dessas coisas, inclusive
que um casal que morara ali costumava receber um grupo e fazer invocações e
rituais estranhos. Fora isso, nenhum massacre, morte ou coisa mais trágica
tiveram lugar na casa. Os barulhos inexplicáveis chegaram até certo ponto, mas
nunca nos incomodaram ou trouxeram sustos maiores, mas minha esposa começou a
sofrer de depressão. Pelo seu histórico – ela tinha sofrido abuso quando
criança – não pensei que tivesse qualquer relação com o lugar. Ela fazia
tratamento, o mesmo acompanhamento que fizera anos atrás e pudera se recuperar totalmente.
Mas as coisas foram piorando e uma noite – a casa estava estranhamente
tranquila -, minha esposa se ergueu de um sono agitado e começou a gritar
dizendo que estava encarcerada por espíritos. Achei que a expressão fosse pura
manifestação de angustia e delírio, não tendo relação real com as manifestações
da minha casa. Mas eu estava errado, hoje tenho a plena consciência que errei
desgraçadamente. Minha esposa só piorou e eu tive inclusive que impedir seus ímpetos
suicidas. Veio a noite terrível em que após um choro convulsivo, minha mulher
começou a gritar numa língua estranha e me olhou com uma expressão de puro
ódio. Parecia possuída como nos filmes hollywoodianos mais cheios de clichê que
se pode imaginar. Nesse momento a casa toda começou a manifestar um imenso
barulho. As vozes, antes ouvidas espaçadas, começaram a se manifestar todas ao
mesmo tempo, os passos, como se fosse um batalhão, correndo por todos os
cômodos da casa, as portas batendo vigorosamente. Eu gritei pedindo para que
parassem com aquilo num apelo desesperado e irracional. Mas algo em mim já
dizia que não haveria misericórdia... Minha esposa levantou-se e saiu correndo
pela casa. Eu a segui para impedir que se machucasse, mas logo a perdi de
vista. Eu a procurei por todos os lugares da casa e jamais a encontrei.
Verifiquei portas e janelas e constatei que todas estavam fechadas. Ela até
poderia ter saltado por uma das janelas, mas não poderia tê-las deixadas
fechadas como estavam. Pelas portas, não havia dúvidas: a da frente e dos
fundos estavam devidamente fechadas à chave. Chamei a polícia e eles não deram
muito crédito à minha história. Disseram que ela devia ter saído de alguma
maneira, talvez até mesmo com minha ajuda. E foi isso. Só isso! Até hoje, após
oito longos meses não encontrei pista sobre o paradeiro da minha esposa. Tentei
todos os recursos possíveis, de internet à TV e rádio locais. Nada,
absolutamente nada sobre onde aquela mulher pode ter ido. Eu revejo aquela cena
mil vezes por dia, ela correndo, dobrando um corredor para nunca mais ser vista
novamente. Houveram centenas de teorias, inclusive de que eu a tivesse matado,
mas nada ficou claro. Abandonei a casa, e isso acabou com minha vida. Agora
vivo de favores, me arrastando durante as horas do dia, padecendo nas noites
insones com as perguntas: onde está minha mulher? O que aconteceu com ela?
domingo, 18 de novembro de 2018
O AÇOUGUEIRO (Conto de terror)
A pequena cidade ficou consternada com o acontecimento. A mulher e a filha de Isaque, o
açougueiro mais conhecido, desapareceram naquela tarde de domingo como se o chão
houvesse aberto um buraco e as puxado para as profundezas da terra. Veio a
polícia da cidade, depois auxílio de investigadores da capital, mas não
descobriram sequer uma pista sólida para seguir. O caso trouxe espanto e pavor.
Aquilo não era o tipo de coisa comum numa cidadezinha como Paraíso Alto, embora
alguns discordassem. Esse mundo não é mais o mesmo, diziam alguns. Isaque foi
inúmeras vezes interrogado. A primeira vez o homem se desfazendo em lágrimas,
na segunda e terceira vez parecia frio e distante como se estivesse catatônico.
Houve quem falasse de choque pós-traumático, termo quase incompreensível para
aquela gente de cidade simples. O impacto do incidente arrefeceu juntamente com
as investigações. Pouco a pouco, as coisas voltaram ao normal. E foi justamente
nesse tempo, depois de dois meses, que Isaque voltou ao trabalho. Estivera à
beira da inanição, passando por todos os tipos de privações financeiras, salvo
pela caridade alheia. Sem mais o que fazer, além de aguardar, retornou ao
ofício de açougueiro. Na pequena venda ao lado de sua casa, voltou a
comercializar suas carnes e frios. Foi nesse mesmo tempo que começou a vender
uma linguiça que chamou a atenção dos clientes. Um produto de alta qualidade,
de sabor incrível. Linguiça apimentada que agradava a todos e em diversas
ocasiões. A procura foi enorme e todos faziam questão de elogiar a mercadoria.
Isaque, ainda visivelmente abalado pelo sumiço da mulher e filha, só concordava. - Mas que linguiça boa, compadre –
diziam quase todos os dias no balcão de Isaque. Ao que o açougueiro se limitava
a comentar:
- É nova, apimentada... Muito boa
mesma, compadre.
E foi então que uma conversa
estranha se espalhou na cidade. O boato de que a nova linguiça, oriunda do
açougue de Isaque, sucesso total, era feita de carne humana. As más línguas
começaram a dizer que Isaque havia matado a mulher e a filha, moído e temperado
suas carnes para fazer recheio de linguiça. Obviamente houve gente que achou a
história absurda, mas muita gente começou a acreditar e espalhar a história.
Foi Rodolfo, o conserta tudo da cidade que alertou o vizinho da história que
estavam espalhando sobre sua mercadoria. Isaque xingou e chorou, ofendido por tamanho
insulto. Jurou esquartejar quem tivesse inventado aquela injuria. Mas os boatos
continuaram e logo as pessoas deixaram de fazer suas compras no açougue de
Isaque. Acompanhados de Rodolfo, que se prontificou a ajudar o vizinho, a polícia
fez buscas no estabelecimento do homem afim de eliminar aquelas suspeitas
absurdas. A princípio os homens não sabiam o que o procurar, pois quem entendia
de anatomia a ponto de diferenciar pedaços miúdos de carne humana e animal? Mas
não demorou para que os homens, mesmo numa busca displicente – na verdade tinha
ido ali com a resolução apenas de acabar com aqueles boatos – encontrassem indicações
de que ali havia acontecido um crime. Roupas de uma mulher e uma criança,
ensanguentadas foram encontradas numa sacola escondidas num canto. Isaque não
soube explicar como aquele material estava ali. Mas não demorou para que as
coisas ficassem ainda mais complicadas. Um dos policiais achou orelhas humanas,
dedos e outros pedaços de carne num saco, congelados no fundo do freezer. O
açougueiro foi preso sob gritos e protestos. Rodolfo levou as mãos à cabeça.
- Pelo amor de Deus, compadre!
O povo de Paraíso Alto ficou
absolutamente chocado com a história. A imprensa do estado fez cobertura do
caso que logo foi comparado aos crimes da rua do Arvoredo, caso famoso que teve
lugar em Porto Alegre no século XIX. Isaque continuou negando a autoria do
crime, mesmo com a comprovação de que roupas, sangue e demais restos humanos
eram de sua mulher e filha. Uma manhã o açougueiro foi encontrado morto,
enforcado com um curto pedaço de tecido, engenhosamente preço nas grades da
cela, numa espécie de garrote onde só foi possível se matar de joelhos, com o
corpo devidamente curvado. A polícia forense fez um exame geral nos apetrechos
de trabalho de Isaque, mas não encontrou mais vestígios de sangue e carne
humana em nenhum outro canto, fato que indicaria que ele não produzira
linguiças naquele local, muito menos com carne de pessoas. Rodolfo ficou
preocupado com a descoberta, pois achara que as roupas, alguns pedaços do corpo
da mulher e da criança seriam suficientes para comprovar a culpa do vizinho. Devia
ter levado mais que isso para o estabelecimento de Isaque, o que seria
complicado. Pelo menos estava tranquilo. Ele cometera um crime ao qual ninguém
suspeitava ser ele o autor, e ainda por cima conseguira colocar a culpa no
marido e pai das vítimas, além da história das linguiças, que mesmo desmentido
pelas autoridades, continuava como fato na boca do povo.
domingo, 11 de novembro de 2018
SATÂNICOS (Conto de terror)
Começo
essa mensagem informando que isso não é uma brincadeira. Talvez você até possa
encontrar algumas notícias sobre minha morte ou desaparecimento. Deixo esse
escrito como alerta e uma pequena ajuda para aqueles que quiserem desvendar meu
assassinato. Meu nome é Felipe Alonso, sou programador e tinha como hobby –
nada saudável, hoje reconheço – de chafurdar os abismos da internet. Foi lá que
me deparei com um grupo auto denominado O Sábios. Como muitas outras
associações obscuras da internet, esse grupo se definia como adoradores de
Satã. A peculiaridade deles era a de que suas crenças se baseavam na premissa
de que o príncipe das trevas era o ser mais injustiçado do universo. Lúcifer
sofrera a punição de um Deus déspota e soberbo. Foi num foro online que travei
conhecimento com os praticantes desse culto. A nível de curiosidade mórbida,
troquei contatos com um sujeito denominado Demon8. Para ser justo, admito que Demon8 me advertiu em várias ocasiões
e perguntou muitas vezes se eu queria mesmo conhecer o grupo. Acreditando que aquilo
se tratava de mais uma bravata da deep
web, disse que tinha interesse em entrar no grupo. Demon8 falou que poderia fazer uma iniciação online comigo e um
dia promover um encontro com um de seus representantes. Disse-lhe que era uma
boa ideia e confesso que digitei isso rindo bastante. Muito interessante saber
que os seguidores de Satã tinham uma escola de conversão via internet. Uma
coisa aparentemente tosca que tinha outros objetivos. Então meu contato me
enviou vários pdfs falando de sua crença. Não tive muita paciência para ler o
material completamente, mas em suma eles se diziam membros da religião mais
antiga da terra, a única que defendia um ideal de justiça e uma aberta rebeldia
contra Deus. Depois de responder a algumas perguntas, das quais não recordo no momento,
Demon8 indagou se eu estava preparado para o próximo passo. Perguntei qual
seria e ele respondeu que se tratava de cometer um assassinato ritualístico
para consolidar meu desejo de entrar na seita. Após disso, sem muita conversa,
me mandou um link no que me direcionou a um vídeo. Nesse momento vi que não estava
diante de alguém que estivesse apenas brincando. No vídeo, Demon8 assassinava
um homem e se lambuzava com seu sangue. Como tive certeza de que o vídeo era
real? Simples, a imagem em alta definição mostrava um sujeito que se apresentava
como Demon8 e dizia que a seguinte morte era para servir de modelo para mim. Citava
meu nome, dados e dizia que era uma exigência que matasse alguém da mesma
maneira e gravasse meu crime. Nessa ocasião, passei a noite em claro pensando
na loucura em que tinha entrado. Por causa de mim, alguém tinha sido morto. No
outro dia, tentei apagar meus rastros na rede fazendo uso dos meus
conhecimentos. Um mês depois, quando começava a pensar naquela história como um
pesadelo distante, recebi um telefonema em meu celular de Demon8. Naquele mesmo
instante joguei fora meu chip. Como não usasse mais nenhuma rede social, passei
a receber bilhetes de Demon8. Era inexplicável como eu os achava, algo a tal
ponto tão impressionante, que eu achava que aquilo tinha um quê de sobrenatural.
Os recados que eu recebi exigiam que eu continuasse com o que tinha me proposto
a fazer. Era isso ou uma morte horrível. Cheguei a mudar de apartamento, mas os
recados não paravam de chegar. Certa noite, num impulso, liguei para um dos
números do bilhete e disse que não ia matar ninguém, que tudo tinha sido um mal-entendido,
uma brincadeira estúpida de minha parte e que se não me deixassem em paz ou eu
iria colocar a polícia no meio daquela história. O homem do outro lado
simplesmente disse que eu não tinha como escapar e que ficasse a vontade de
fazer o que eu quisesse, só devia ficar advertido que as consequências estavam
por vir. Ontem à noite recebi um ultimato. Eu teria apenas um dia para
resolver. A polícia agiu com incredulidade quando eu disse que não tinha mais o
link do crime, tudo se fora com a limpeza dos meus rastros. Resolvi fugir.
Tomei um ônibus de viagem e depois de uns bons cem quilômetros, desci e me
hospedei numa pequena pousada de beira de estrada. No meio da noite, acordei
com o telefone tocando. Ao atender apenas ouvi: - Não adianta fugir, nós
sabemos onde você está. – Foi então que eu me sentei e escrevi esse relato. Amanhã
pretendo fazer cópias deles e continuar na minha fuga, deixando em cada canto
essa mensagem.
domingo, 4 de novembro de 2018
DO OUTRO MUNDO (Conto de terror)
Ele
não colocava muita fé nessas histórias de almas penadas, mas também não
duvidava. Era um caboclo do sertão que não se preocupava muito com as
especulações sobre o outro mundo. Mas então algo veio a acontecer que mudaria
muita coisa nas suas crenças. Fernando fazia um caminho sagrada sobre seu
cavalo nas noites de sexta feira e sábados. Era uma pequena empreitada de
poucos quilômetros, mas com caráter extremamente importante: ir ver a noiva. Ia
sempre a noitinha, por volta das oito e voltava dez, onze. Era muito querido
pela família da noiva e as vezes conversava com o pai da sua amada sobre roça e
coisas afins. As vezes a troca de ideias entre futuro genro aproximava da meia
noite, então, Seu João se apressava em se despedir do rapaz. Fernando beijava a
noite e tomava seu caminho à cavalo. As vezes achava ríspida a resolução do
futuro sogro em despacha-lo súbito, quando se aproximava das doze da noite, mas
acreditava que isso fosse uma resolução do velho para que a filha não ficasse
mal falada na vizinhança como a moça que ficava com o noivo até depois da meia
noite. O motivo, no entanto, era outro. Fernando, não dava muita atenção, mas
próximo a margem de um pequeno córrego, no caminho para a casa da noiva, havia
uma cruz que sinalizava que alguém tinha perdido a vida ali. Diziam que ninguém
passava pelo lugar depois da meia noite, pois coisas estranhas aconteciam.
Ninguém contava ao rapaz que o motivo da despedida repentina era para que ele
evitasse os perigos do sobrenatural nesse ponto, no horário mágico que permitia
a intercessão dos mundos. Porém, certa vez, devido a uma conversa empolgada
sobre novas máquinas agrícolas, Fernando estava na residência da noiva faltando
apenas dez minutos para a meia noite. Seu João, como sempre, temeroso de alma
penada tratou de manda-lo embora. Rapaz, já é quase meia, noite, melhor você ir
indo, falou se levantando da cadeira de balanço na varanda. Resignado, o rapaz
foi beijar a noiva e pegar seu cavalo. Ele só saberia depois, mas a noiva e sua
família, a partir do momento em que ele saiu, começaram a rezar para que ele
fosse rápido e passasse pela cruz antes que desse a hora das visagens.
Fernando, como sempre, seguiu sem pressa. Gastou logo os oito minutos que lhe
restavam e chegou à margem do córrego meia noite e dois. Tudo transcorri na
mais absoluta normalidade até que o Primoroso, o cavalo de Fernando estacou
súbito. Estranho, pensou Fernando, aquilo não era do feitio do animal. Que
tinha acontecido? Primoroso virara uma mula teimosa. A princípio, ele adulou o
bicho e bateu com os calcanhares de leve nas suas ancas. O cavalo andou mais
três metros, ultrapassou o córrego e estancou novamente. Dessa vez, Fernando
foi mais severo nos comandos. Falou com o cavalo como costumava fazer e já
estava prestes a xinga-lo quando
percebeu duas coisas desconcertantes: um vento frio vindo do nada e uma
presença de puro espanto. Foi olhando para trás, mas antes que pudesse
completar o ângulo para ver o que tinha atrás de si, viu, pela sua visão
periférica um ser escuro. Voltou-se para frente e sentiu todos os pelos do seu
corpo ficarem de pé. Seria a alma do caboclo dono daquela cruz ali que ele não
dava importância? Fernando voltou a fustigar o animal, queria sair dali o mais
rápido possível, mas o cavalo parecia de pedra. Foi então que tudo piorou
vertiginosamente. O rapaz sentiu numa espécie de onda de choque quando aquela
coisa tocou no seu cavalo... Subiu na garupa do animal. Primoroso relinchou,
chegando a erguer a meia altura as patas dianteiras. Houve um momento em que o
bicho pareceu relaxar, mas ele apenas puxou o fôlego e começou a dar coices e
se movimentar como um cavalo de rodeio. Fernando, sem conseguir olhar para trás,
se segurou como pôde e cerrou os dentes entre o terror daquela presença e a
vontade de gritar rogos e pedidos de ajuda. Primoroso correu alguns metros,
chegou numa clareira e começou a rodopiar. O que quer que estivesse em sua
garupa, não o abandonou. Fernando podia sentir a carona indesejada com sua
presença de chumbo às costas, forçando as ancas do pobre animal com seu peso do
outro mundo. O rapaz começou a rezar, mas isso pareceu não surtir efeito.
Quando o cavalo parou de rodopiar, Fernando pensou em desmontar, mas a
perspectiva de ficar a pé diante da aparição o enchia do mais puro pavor. Foi
então que ele voltou a falar com o animal num misto de comando e cumplicidade.
Abraçou o pescoço do bicho e começou a falar em seu ouvido: Vamos sair daqui,
meu camarada, vamos... Vai, Primoroso, vai, vai, trote, trote, voltou-se e fez
o movimento nas rédeas para que o cavalo trotasse em velocidade média. O animal
obedeceu. Caminhou alguns metros com algum esforço, pois a presença continuava
na garupa, pesando como carga imensa. Então depois de um longo e desesperado
relincho, o cavalo se livrou da carona indesejada. Fernando ouviu bem quando aquela
coisa saltou e fez barulho ao pisar no chão. Primoroso aumentou a velocidade e
correu bastante trazendo alívio para si e para o seu dono, se afastando da
entidade e do seu local sagrado. O animal e seu dono chegaram em casa
com as respirações alteradas. Fernando levou Primoroso até seu local de
descanso, o abraçou e o beijou agradecendo por tê-lo salvado daquele episódio.
Depois caiu pesado na sua cama e dormiu profundamente. No outro dia, a primeira
coisa que fez, foi consultar a tia, uma mulher especialista em casos de
assombração. Ela disse que o sobrinho fora vítima de uma alma condenada, presa
entre os mundos por ter tido uma morte violenta. Evite de passar por esse lugar
depois da meia noite, aconselhou a mulher. O rapaz também telefonou para a
noiva e, mesmo se sentindo encabulado, contou-lhe toda a história. Ela
confirmou o que dissera a tia e confessou ser essa a razão do pai dar por
encerrado o encontro deles, pouco antes da meia noite. Fernando sentiu-se
aliviado, mas quando foi verificar seu cavalo favorito, companheiro da luta
contra fantasmas, teve uma surpresa bastante desagradável. O animal jazia no
fundo da cocheira sem vida. Em seu quadril, marcado no pelo claro, estava um
desenho escuro no formato dos membros da carona indesejada da noite passada.
domingo, 28 de outubro de 2018
O VULTO (Conto de terror)
O
que pode nos causar o sobrenatural? A morte? Será que alguém já foi vítima de
um fantasma, monstro do outro mundo? É mais racional se supor que não. Então,
porque temos medo do sobrenatural, supondo que ele existe? Por que as almas de
outras pessoas nos assustam se eles não têm materialidade para nos ferir
fisicamente? Parece que há uma essência no sobressalto da assombração que nos
atinge além da percepção. Um medo irracional que provavelmente está ligado a
uma autopreservação mental. Nossa razão quer a todo custo evitar algo que a
contrarie. Não é simplesmente receio do macabro, mas uma repulsa ao irracional,
do inexplicável, daquilo que contraria tudo que sabemos. Ele era um homem culto. Não muito
cético – acreditava em Deus e na prática saudável da religião – mas não era
dado a crendices e superstições. Tinha uma vida equilibrada entre seus estudos
e trabalhos e era admirado. O que aconteceu, veio sem nenhum aviso prévio.
Talvez, apenas um prólogo do que viria. Sonhou sonhos estranhos aquela noite. E
foram tão estranhos e confusos que aquilo lhe levou o sono. Então tudo teve
começou. De início foi como o som de chuva fraca que se tornará tempestade.
Havia algo de novo no seu quarto. Algo que não estava ali quando ele se
deitara. Um peso no ar que ajudou a insônia a tomar proporções maiores. Tentou
em vão, afastar aquilo do pensamento, mas isso só provocou mais e mais
impaciência. Havia algo de novo perto dele e não sabia dizer o que era, ou
porque estava ali. Buscou o sono e pegou um livro quando desistiu da busca. A
manhã veio se anunciando na tênue mudança da luz do quarto. Infelizmente a
leitura não lhe trouxe sono e aquela sensação não o abandonava. Havia algo de
novo e era um tormento não saber do que se tratava e não poder afastar a mente
disso. Uma presença. Era o que diria para algum interlocutor se no momento
fosse desabafar com alguém. Desistiu. Foi ao banheiro e tomou uma ducha fria.
Ainda tinha duas horas e meia antes de ir para o trabalho, mas era melhor
deixar o quarto. Tomou o café da manhã, conferiu as notícias do dia no seu
celular. O tempo todo tentou se concentrar no que fazia, mas era constantemente
desviado do foco ao pensar naquela presença invisível. Provavelmente quando
estivesse no trânsito, nos estresses do trabalho, se livraria daquilo. Engano! Chegou
em casa se sentindo péssimo. O dia tinha sido de puros aborrecimentos. E
aquilo, aquela sensação de alguém, algum vulto próximo a ele só crescera. Que
diabos era aquilo? Um encosto? Uma alma querendo trazer alguma mensagem como no
cinema? Lutou contra aquilo por horas, por dias. Nos momentos mais recônditos e
nas horas mais públicas. Estava ficando louco! Acordava no meio da noite como
se o tivessem chamado. Por que não vai embora? Perguntava no escuro, na sala,
na cozinha, sempre se voltando para onde achava que podia estar aquele ser sem
forma que se arrastava ao lado dele. Foi em um amigo que gostava de assuntos de
ocultismo e foi recebido com um olhar assustado. Não vai acreditar, sei que não
crer nessas coisas, disse o amigo. Mas tem algo te seguindo. Saiu dali
indignado xingando céus e terra. Como era possível que um sujeito como ele
fosse vítima de algo tão vulgar quanto um fantasma pegajoso! Que tinha feito
pra merecer aquilo. Estavam todos loucos, inclusive ele? Regressou ao amigo que
lhe fez orações e receitas que incluíam encantos e ervas. Naquela noite teve um
ataque de fúria e arrebentou a mobília do quarto xingando sem parar a presença
que não o deixava em paz. Chorou, pediu a Deus, falou em voz alta que estava
ficando louco. Dormiu no tapete, como um cão. Acordou de súbito. A presença
constante ali, só que dessa vez parecia zangada, descontente com ele. Respirou
fundo. Se esforçou nos dias seguintes para ignorar a ira de seu acompanhante.
Tornou-se desleixado. Já não conseguia fazer nada direito. Nem trabalhar,
comer, estudar, qualquer coisa por mais banal que fosse. Visitou templos,
terreiros, muitas teorias, mas aquele ser nunca ia embora. E pior, parecia
reagir negativa ou positivamente ao que fazia. Abandonou o trabalho, a
faculdade, foi pra casa de uns parentes sempre implorando pra não ficar sozinho
com aquela coisa. Foi taxado de louco, consultado por psiquiatras. Nada
resolvia, mas o pânico e um medo crescente tomavam conta dele. Uma noite
resolveu perguntar aquela entidade o que queria dele. Então, no meio do escuro
alguém falou: Te deixar louco se não quiser ouvir minha história. E qual sua,
história? Ele perguntou. A voz então disse coisas que ele não lembraria nunca
mais e depois cessou para sempre juntamente com sua presença. Ele voltou ao
normal. Disse que tinham exigido apenas que lhe escutasse. O quê? Já não podia
lembrar. Mas em essência dizia que os vivos deviam estar atentos ao que há do
outro lado, escondido, prontos a entender ou enlouqueceram com a possibilidade
de outros mundos.
domingo, 21 de outubro de 2018
RICHARD (Conto de terror)
O
terror, em geral, tem forte relação com o passado. Casas ditas assombradas, tem
na sua assombração o resultado de algo que aconteceu em outro tempo. Os vultos
e fantasmas que nos espreitam pelo canto do olho, somente estão ali por causa
de algo que deixaram os mortos aprisionados no presente. Maldições são
resultados de ódios que ocorreram anos atrás e continuam manifestando sua
desgraça através do tempo. Objetos enfeitiçados foram obra de um desejo de
continuidade. O terror é de natureza velha, é sempre resultado, resquício,
perpetuação da maldade e do erro que já foi. É um castigo para os presentes e a
mensagem de que há coisas que devem continuar punindo indefinidamente. O velho Richard era um homem recluso e
isso era coisa que se sabia. Aposentado já há alguns anos, poderia ter tido uma
vida confortável e igual a de vários outros cidadãos comuns. Viúvo, solitário,
se ocupava em acumular coisas. Depois da morte da esposa e dos filhos num
acidente, ele perdera o contato com as pessoas e se fechara no seu mundo. E
assim os anos se passaram sem que alguém se dispusesse a se aproximar dele. As
explicações mais simples, eram as mais aceitas: o homem ficara louco por causa
da solidão e tristeza. Um caso comum e inofensivo de loucura urbana. De fato,
era sem importância e até útil o velho que pegava os moveis abandonados pela
vizinhança e levava para sua espaçosa e abarrotada casa. As mães usavam sua
imagem para assustar as crianças fazendo-as se comportar. Os moleques mais
velhos evitavam deixar suas bolas de futebol caírem no seu jardim que acumulava
todo tipo de sucata. Tudo corria na mais absoluta rotina vazia até aquele
verão. As pessoas começaram a sentir um cheiro forte de podridão como nunca
antes haviam sentido por ali. Fizeram uma busca, mas nada encontraram. A única
coisa que descobriram foi de onde poderia vir o mal cheiro. Da casa do recluso
e acumulador do bairro. Pensou-se a princípio que o homem tinha recolhido
animais mortos. Alguém foi falar com ele, mas foi recebido de maneira bastante
hostil O homem não falava mais, só grunhia e parecia agressivo. Tiveram certeza
de que algo estranho acontecia naquela casa. Recorreram ao poder público,
bombeiros e policiais vieram. Então a verdade veio à tona. Dispostos de maneira
curiosa, foram encontrado cadáveres de 3 pessoas. Duas moças e um garoto. Os
corpos apresentavam vários golpes de objeto cortante. O velho Richard não quis
falar, ergueu um facão enferrujado para os homens da lei, mas foi imobilizado
imediatamente. Permaneceu em silêncio diante das autoridades. A maioria
concordou que ele perdera a capacidade de se comunicar e se suspeita que, mesmo
que falasse, não seria capaz de justificar ou explicar o que fizera. Sobre as
vítimas, descobriu-se que o garoto vivia na rua e as duas mulheres se tratavam
de prostitutas. Ao que tudo indica, o velho os atacara à noite e trouxera seus
corpos no carrinho que ele costumava usar. O eremita terminou os seus dias num
hospício. Sem falar, só emitindo urros em situações extremas. Nunca se entendeu
suas razões. A explicação mais plausível, foi que na sua loucura o homem tentou
reconstruir sua família. Conclusão baseada na posição em que estavam os corpos
dispostos ao redor de uma mesa. A casa de Richard veio a baixo com o
tempo. Uma nova residência foi construída no lugar. Até hoje, 3 famílias já
moraram lá. Todas abandonaram a casa pela mesma razão: barulhos inexplicáveis à
noite, vultos, estranhos gemidos e, principalmente, lixo aparecendo pelos
cantos do dia para noite. Não falta quem diga que a alma do velho Richard ronda
o local carregando sua velha tristeza e obsessão em acumular objetos. Na casa
há uma placa de aluga-se, já perdendo se desbotando, e apesar do bairro ter um
constante de serviço de limpeza pública, o lixo se acumula na sua calçada e
jardim de maneira espantosa.
domingo, 14 de outubro de 2018
A COISA QUE URRAVA parte 2 (Contos de terror)
A
decisão que eu tomei para resolver aquilo trouxe resultado, mas também efeitos
colaterais indeléveis. Como cheguei a passar uma noite toda acordado por causa
dos urros, resolvi buscar mais a fundo a origem daquilo. Nem sequer esperei
passar outra noite toda em claro. Uma foi simplesmente um inferno! Então, imediatamente
na noite seguinte, saí de casa tão logo os urros começaram. Parei diante do meu
portão e olhei para os dois lados da rua. Não havia viva alma naquela hora da
noite. Apenas um vento frio e o farfalhar das plantas. Apesar de todos os
postes da rua terem lâmpadas funcionando perfeitamente, parte da rua ficava na
penumbra. Principalmente debaixo dos enormes pés de jambo que se dispunham na
caçada – e por ali havia vários. Estranhamente não ouvi os urros.
Aleatoriamente escolhi o caminho da direita e fui andando. Olhava os muros e as
janelas das casas vizinhas. Caminhei pouco e logo às minhas ouvi os malditos
urros. Voltei-me e fui andando, apurando o ouvido para descobrir de onde vinha
aquele som. De acordo com minha audição atravessei a rua e fui em direção a um
automóvel que estava dois terços estacionado na calçada, o restante na rua. Os
urros e gemidos ficaram tão próximos que eu tive a certeza de que logo veria o
ser que produzia aquelas lamúrias a noite toda. Parei perto do automóvel e
escutei. Caminhei mais um pouco e a fonte do barulho pareceu diminuir. Voltei.
Olhei para dentro do automóvel de vidros escuros, mas era impossível ver algo
através do vidro. Será que a criatura estava dentro daquele automóvel? Agora
ouvindo os urros e gemidos tão mais próximos, não sabia dizer se quem produzia
aquilo era um ser humano ou um animal. Mas não fazia sentido uma pessoa ou
bicho estarem preso dentro do automóvel. Que louco faria isso? Tive então uma
ideia bastante óbvia: olhar debaixo do carro. Fui me agachando quando ouvi algo
além dos urros. O som do movimento de patas de um animal ciscando no chão.
Imediatamente me detive. Fui me afastando devagar e olhando para debaixo do
automóvel. Tive certeza de que havia algo ou alguém ali embaixo. Parei,
continuei observando e recordo bem que nesse momento os urros cessaram. Então
ele – uso o pronome apenas para designar o ser, mas era impossível saber se era
do gênero feminino ou masculino – saiu de debaixo do carro. Descobri naquele
momento que o horror absoluto causa um choque quase indescritível e progressivo.
Senti minhas forças serem drenadas pouco a pouco. Lembro que além do mal-estar
físico intenso que senti, algo gritou na minha mente que o sobrenatural com
fantasmas e demônios eram uma coisa absurdamente real. E eu estava ali e todo
aquele horror não era um simples pesadelo. O ser tinha traços humanos, mas era
deformado a um ponto que não se podia dizer que era uma pessoa com defeitos
congênitos ou adquiridos. O monstro se arrastou para fora, olhou para mim e
abriu a boca. Seu crânio exibia uma fonte baixa, seus olhos não possuíam
simetria, apesar de terem algo de consciente, humano e febrilmente insano. Sua
boca era enorme e tinha dentes enormes, amarelados e sujos. O nariz eram apenas
dois orifícios desiguais entre a inexistência de lábios e os olhos. Seu tronco
era curvado e seus membros, braços e pernas desiguais. Numa fração de segundos achei
que aquela coisa fosse aleijada, mas logo conclui que não. Havia uma harmonia
doentia na anatomia da criatura. Uma anatomia que a projetara para rastejar e
ser repulsiva. Mas nem o mais vil dos repteis que eu conhecia tinha aspecto tão
desagradável. A pele da criatura variava de um tom amarelo a branco e tinha
muitas manchas escuras. Também exalava um odor de carne podre insuportável. Ele
me olhou nos olhos, abriu a boca e urrou do jeito familiar que eu acompanhara
todos os dias desde que viera morar ali. Nesse momento percebi que me faltava
ar e minha pernas pareciam pesar toneladas. Caminhei de costas com os olhos
pregados no monstro, vendo ele se arrastando e urrando. Com dificuldade me
voltei e segui em direção à minha casa. Parei diante do meu portão, me virei e
vi que o demônio ainda vinha em minha direção. Nada do que posso falar acerca daquela
criatura se constitui numa certeza, mas tinha uma impressão bastante clara de
que ele sofria e havia rancor no seu urro além de dor. Este foi um dos meus
últimos pensamentos antes de desmaiar.
Acordei com uma senhora com roupas
esportivas me chamando. “Meu filho, que você tá fazendo deitado na calçada? ”
Levantei, encarei a senhora, olhei para o local onde tinha visto o monstro a
última vez e não vi nada. “Você está bem, jovem? ”, indagou a senhora.
Disse-lhe que tinha passado mal quando vinha chegando em casa. “Isso foi coisa
de farra...”, a senhora falou e eu me apressei a entrar em casa. Ela continuou
falando algo, mas eu não ouvi. Tratei de entrar em casa para fugir de todo
aquele horror que parecia estar ainda bem próximo de mim.
Naquele mesmo dia fui para casa dos
meus pais. Dois dias depois fui com uma empresa de mudanças pegar meus poucos
pertences. Minha mãe insistiu em saber o que tinha me feito abandonar a nova
casa. O tempo todo ela insinuava que eu tinha sido assaltado ou coisa parecida.
Não me animei a contar a história daquela coisa que urrava. Mas não lhe ocultei
tudo. Disse-lhe que a casa, a rua me dava arrepios e eu tinha dificuldade de
dormir. Meus pais disseram que eu poderia ficar o tempo que quisesse.
Obviamente não ouvi mais os urros daquela criatura, mas sua imagem ficou
gravada em minha mente e, embora eu a tivesse visto por pouco mais de um
minuto, era algo bastante nítido. Tanto que, as vezes a noite demoro a dormir
lembrando de sua face e urros, além dos sonhos recorrentes que tenho com sua
visão de puro horror. Já fazem 10 anos que isso ocorreu, mas eu recordo tudo
tão bem como se tivesse acontecido há uma semana. Nunca encontrei uma
explicação clara para o que aconteceu. Quem ouviu de mim o acontecimento, falou
em sonhos acordados. Não posso especular mais nada, só tenho a certeza de que o
horror existe com mistérios absolutos e aparentemente sem propósitos.
domingo, 7 de outubro de 2018
A COISA QUE URRAVA parte 1 (Contos de terror)
Eu
tinha 25 anos quando fui morar sozinho. Acabara de sair da faculdade e
conseguira um bom emprego num famoso escritório de advocacia. Lá eu ia aprender
com os melhores e teria imensas chances de ser um grande advogado. Confesso que
tudo vinha da assistência do meu pai e de uns tios que tinham uma larga
tradição em direito na cidade. Talvez foi exatamente por isso, essa ajuda
presente em todos os estágios da minha vida, que fez aumentar o meu desejo de
ir morar sozinho. E num lugar que minha família tradicional e super protetora
não aprovava. Eu ganhava um bom dinheiro, mas não era ainda suficiente para
pagar o aluguel de uma casa num dos bairros mais nobres da cidade. Para mim era
tranquilo viver numa pequena e simpática casa na periferia. Meus familiares
foram contra, se ofereceram para ajudar no aluguel de uma moradia melhor, mais
bem situada. Não aceitei. Disse que eles tinham me ajudado a vida toda e eu
queria agora galgar os degraus da vida sem segurar na mão de ninguém. Eles já
tinham feito muito. Eu era grato, mas queria mudar as coisas. “Esse emprego no
escritório é representa muito, me deixem andar com minhas próprias pernas a
partir de agora”, eu disse. Meu pai disse que entendia. Minha mãe fez um ar
insatisfeito. Meu tio sorriu e deu uns tapinhas nas minhas costas. “Dá-lhe,
garoto! Você sabe o que tá fazendo! ” Eu sempre tivera uma vida privilegiada,
tinha reconhecido e dado valor aquilo tudo, era extremamente grato e achava que
tinha recebido mais que o suficiente. A maior preocupação da minha mãe era
porque eu estava indo para um bairro mal afamado, violento e repleto de
traficantes. “Você não vê como as coisas estão? ”, indagava minha mãe com uma
expressão que fazia a testa dela ficar toda franzida. Disse que estava
decidido. As discussões acabaram e eu me mudei. Lembro que me sentia muito eufórico,
senhor do meu destino. Levamos minhas poucas coisas para nova casa e eu comecei
a me estabelecer. Digo nova casa, me referindo à novidade de morar sozinho, mas
a casa em si era um tanto antiga. Não que estivesse caindo aos pedaços, era
muito bem conservada por sinal. Simples e bem estruturada, pintura nova e tudo
mais. Na primeira noite lá, eu fiquei acordado até tarde estudando alguns
papéis, adiantando coisas do trabalho. Tomei uma taça de vinho e me deitei no
carpete recentemente colocado. Recordo que a sala era o único cômodo
devidamente organizado naquela primeira noite. Ouvi alguns urros estranhos, mas
não dei atenção a isso. Estava muito cansado e acabei dormindo ali mesmo. A
semana se passou e durante esse tempo eu dormi na sala. Depois do primeiro
final de semana, deixei tudo em ordem e dormi a primeira noite no quarto, o
quarto principal que ficava na parte frontal da casa. Ouvi mais claramente os
urros, pouco antes de dormir. Escutava esses urros intercalados por latidos de
cães, vozes de pessoas que passavam pela rua, sons dos poucos automóveis – era
uma rua estreita, pouco movimentada; de maneira que não dei atenção. Na outra
noite, chamei uns amigos para uma pequena festinha. Fui dormir às 4 da manhã um
tanto leve por causa do vinho, mas lembro, claramente que nessa noite dei mais
atenção aqueles sons estranhos antes de dormir.
Então aquilo se tornou rotina.
Sempre antes de dormir eu ouvia urros, gemidos agudos que se estendiam
indefinidamente. Eu sentia que havia algo de estranho naquilo, mas sempre
tentava ignorar. Uma noite sonhei que entrava na minha casa um monstruoso cão
negro de olhos vermelhos. O bicho não latia nem rosnava, apenas emitia os urros
que eu costumava ouvir quando deitava na cama à noite. Aquela coisa partia para
cima de mim e eu me encolhia todo em atitude de defesa. Acordei num susto quase
igual aquelas cenas que vemos em filmes quando o sujeito acorda em sobressalto,
suado e ofegante. Tentei me acalmar e disse a mim mesmo que tudo não passava de
um sonho. Foi aí que eu ouvi claramente aqueles urros que estavam terríveis
como nunca naquele momento. Pela primeira procurei a fonte daqueles sons.
Levantei, fui até a janela, abri as persianas e olhei para fora. A vista era
bastante limitada: via meu jardim com algumas poucas plantas e parte da rua
depois do portão. Tive a impressão de que o som vinha da rua, não era algo que
estivesse trancando em algum lugar.
Num
dia pela manhã interpelei um vizinho sobre aquele barulho. Ele disse não ter
ouvido nada. Estranho era que ele morava bem ao lado da minha casa. “Desde a
primeira noite que dormi aqui que escuto isso”, falei. O sujeito me olhou
confuso. “Talvez seja um cachorro de rua”, ele supôs fazendo um ar
condescendente que indicava que era óbvio que ele não estava interessado
naquele assunto. As noites seguiram e sempre antes de dormir aquilo me
atormentava. Tentei de várias maneiras ignorar aquilo: leituras, programas de
TV, celular, computador, mas minha mente sempre se voltava para aquele barulho
infernal. Não queria muito admitir, mas aquilo causava algo estranho em mim e
eu não sabia dizer o que era. Não era somente o som, pois o mesmo não era alto
a ponto de impedir o sono. Ouvir aquilo, mesmo que em um tom menor já era
exasperante. Digo isso com toda a certeza porque dormi nos outros quartos e a
perturbação era a mesma. Mas o que era um persistente, intenso e curto incomodo
– isso durava até eu conseguir dormir -
aumentou e, os quinze vinte minutos antes de dormir ouvindo aquilo, se
prolongou para uma hora, duas... Três. Meu tempo de sono foi diminuindo. O
tormento atrasando o sono e se intercalando entre ele, ou seja, eu demorava a
dormir e depois acordava por causa dos urros e não dormia mais. Algo que de
início não tinha acontecido
domingo, 30 de setembro de 2018
FÁBRICA DE FANTASMAS (Conto de terror)
Ela
chegou sozinha à chácara. Foi dirigindo tranquila, conhecia bem a região, o
caminho irregular, cercado de mato fechado. Frequentava o lugar desde criança.
Tinha sido a casa de campo da família dela. Finais de semana divertidos que não
podia esquecer. Churrascos, banhos de piscina, fogueiras a noite e até mesmo
dormir fora da casa, num pequeno acampamento com irmãos e primos. Quando o
tempo passou, veio o descuido da propriedade, todo mundo foi se desgostando do
lugar. Vieram às casas de praia dos tios, dos amigos de seu pai que tomaram o
tempo de lazer dos finais de semana. Nova empolgação: som de mar, piscinas
maiores ao invés de céus estrelados e sons de grilos a noite. Então o pai
comprou uma casa bem perto da praia e a chácara ficou esquecida. Era bom ir à
praia com a família, mas ela nunca esqueceu do campo, da piscina modesta, das
noites frias, do cheiro do mato e histórias assustadoras perto do fogo. Quando
se tornou adulta comprou a chácara do pai. Não falava com o velho havia anos,
mas foi uma negociação rápida e o preço muito bom. Era o mínimo que ele podia
fazer depois de anos de desentendimento. Tinha resolvido os principais
problemas da propriedade. Agora aquele era seu santuário particular. Vinha passar
muitos finais de semana ali. As vezes sozinha. Não importava que lhe dissessem
que era perigoso. Ouvira casos de invasões às propriedades próximas. Pessoas
tinham sido roubadas, espancadas, estupradas. A violência exacerbada dos
centros urbanos chegava nas regiões mais afastadas com rapidez espantosa. Mas
não ia se atormentar com isso. Desceu do carro, abriu as duas imensas metades
do portão de madeira, entrou no automóvel e o estacionou além dos muros. Fechou
tudo e se sentiu em seu mundo. Seguiu pelo caminho cercado de flores e
pitangueiras que formavam uma cerca viva. Se sentia feliz como não podia se
sentir em lugar algum. Ela chegou até a porta da casa principal e parou ao
ouvir algo. Olhou para trás. Será que havia alguém ali? Se sentiu observada. Ultimamente
isso tinha sido comum naquele lugar. Sempre a sensação clara de que alguém
estava ali observando tudo que ela fazia. Mesmo quando ia no banheiro, a
presença não desvanecia.
Estava preparando um lanche na cozinha quando o som de pancadas a fez para súbito. Ficou ouvindo, olhos no ar. Foi até a porta da cozinha e observou. Diante dela somente as árvores, o som distante dos pássaros e do vento. Era um dia claro de sol. Tudo na mais perfeita normalidade não fossem aquele barulho. Voltou a cozinha, terminou de preparar o sanduíche e foi até a varanda. Sentou-se e ficou comendo enquanto observava a paisagem à sua frente. Haviam duas mangueiras frondosas, pés de goiaba, acerola e as belas muretas feitas com as pitangueiras. Lembrou que em determinada época do ano – não lembrava o mês – quando havia pitangas maduras, o cheiro era uma coisa soberba. Terminou de comer o sanduíche e bebeu o ultimo gole de refrigerante. Acendeu um cigarro e ficou fumando, se sentindo ainda mais relaxada. Aquele era seu reino, suas melhores lembranças de infância, seu porto seguro. Na chácara aquilo nunca acontecera. Sim. Sabia que isso era mais por causa da quantidade de pessoas do que pelo local em si, mas não importava. Deu mais um trago no cigarro e se sentiu zonza. Que sensação mais relaxante, pensou. E as coisas ainda estavam apenas começando. Mais tarde pretendia ter uma longa conversa com a garrafa de vinho que trouxera. Iam ser só ela, a bebida, os cigarros, as boas lembranças... e aquele homem que vinham agora cruzando metade da chácara vindo ao seu encontro? Ela fez um movimento a frente com a cabeça e encarou o homem que vinha caminhando e sumiu diante dos seus olhos. Agora tinha sido claro. Não fora uma pancada a esmo, mas tinha visto mesmo o sujeito. Apagou o cigarro no cinzeiro, pegou o prato, o copo e entrou em casa.
Estava preparando um lanche na cozinha quando o som de pancadas a fez para súbito. Ficou ouvindo, olhos no ar. Foi até a porta da cozinha e observou. Diante dela somente as árvores, o som distante dos pássaros e do vento. Era um dia claro de sol. Tudo na mais perfeita normalidade não fossem aquele barulho. Voltou a cozinha, terminou de preparar o sanduíche e foi até a varanda. Sentou-se e ficou comendo enquanto observava a paisagem à sua frente. Haviam duas mangueiras frondosas, pés de goiaba, acerola e as belas muretas feitas com as pitangueiras. Lembrou que em determinada época do ano – não lembrava o mês – quando havia pitangas maduras, o cheiro era uma coisa soberba. Terminou de comer o sanduíche e bebeu o ultimo gole de refrigerante. Acendeu um cigarro e ficou fumando, se sentindo ainda mais relaxada. Aquele era seu reino, suas melhores lembranças de infância, seu porto seguro. Na chácara aquilo nunca acontecera. Sim. Sabia que isso era mais por causa da quantidade de pessoas do que pelo local em si, mas não importava. Deu mais um trago no cigarro e se sentiu zonza. Que sensação mais relaxante, pensou. E as coisas ainda estavam apenas começando. Mais tarde pretendia ter uma longa conversa com a garrafa de vinho que trouxera. Iam ser só ela, a bebida, os cigarros, as boas lembranças... e aquele homem que vinham agora cruzando metade da chácara vindo ao seu encontro? Ela fez um movimento a frente com a cabeça e encarou o homem que vinha caminhando e sumiu diante dos seus olhos. Agora tinha sido claro. Não fora uma pancada a esmo, mas tinha visto mesmo o sujeito. Apagou o cigarro no cinzeiro, pegou o prato, o copo e entrou em casa.
No quarto tirou toda a roupa e ficou
se olhando nua no espelho. Provavelmente a estavam observando, ela pensou. Não
era de se espantar. Mesmo quando era criança passava por isso. E isso fora o
princípio de tudo. Colocou o biquíni e saiu.
Saiu da piscina, sentou na borda e
inclinou a cabeça para trás de modo que pudesse sentir ainda melhor o sol. Era
pouco mais de meio dia, um sol não muito aconselhável, mas tudo bem. Não era de
exagerar. Tinha os olhos fechados, sentindo os raios de sol lhe aquecendo a
pele e percebendo a presença deles todos ali. Agora eles tinham perdido a
timidez. Se acercavam dela sem receio nenhum. Tinha certeza de que se abrisse
os olhos podia ver a todos. Mas não fez isso. Pulou novamente na piscina e
ficou nadando de uma borda a outra. Depois saiu, se envolveu na toalha, acendeu
mais um cigarro e ficou fumando sentada numa das imensas cadeiras inclinadas.
Olhou e viu alguns deles ao longe. Ou seria sua visão que estava lhe pregando
peças? Apertou os olhos na direção em que julgava que eles estavam. Sim, havia
alguns ali. Não precisava ter medo. Tivera medo muitas vezes na vida. Aqueles
outros, sim, tinham lhe proporcionado medo. Não mais. Fazia tempo que ela
deixara de ser uma garota indefesa. O último engraçadinho tinha levado um tapa
na cara, na frente de todo mundo.
Depois de uma longa e refrescante
ducha, ela armou a rede na varanda e dormiu como se estivesse deitada em
nuvens. Aquilo sim, um pequeno pedaço do paraíso. Ela sozinha, no seu lugar
favorito no mundo inteiro. Acordou no fim da tarde e continuou deitada,
observando a paisagem. Não sabia dizer porque, mas havia algo de melancólico na
própria felicidade. Agora com a luz diminuindo, ficaria ainda mais fácil vê-los.
Tudo isso era um peso. Mas tudo bem. Com
um impulso do pé na parede, começou a se balançar e logo lembrou que nunca
dormia de rede em casa. Ali tudo, bem, mas em casa dava uma sensação ruim. Era
na rede que ele a atacara muitas vezes. Ele e outros. Felizmente na chácara
tudo ficava anulado. E não era apenas porque na infância se sentia segura ali,
mas porque a justiça era feita. Levantou-se num impulso, foi até a sala, pegou
o vinho, os cigarros. Depois foi até a cozinha. Cortou um pedaço de queijo
coalho. Tira gosto perfeito. Fui até a varanda e ficou bebendo, comendo e
fumando. Depois de um tempo, ligou o som. A música tomou conta do ambiente.
Escurecia. A melhor hora estava chegando.
Não estava nem embriagada, mas já
via eles chegando. Eles ficavam parados no gramado, entre a piscina e a
varanda, diante dela. Simplesmente a observavam com olhar resignado. Não podiam
fazer nada. Talvez a estivessem olhando com ódio, mas o que poderiam fazer?
Sorriu.
- Agora vocês não podem mais fazer
nada com ninguém.
Quem dera existisse alguém como ela
quando era uma criança. Não teria problema seu pai ter entrado na lista. Alguns
tios, primos. O desgraçado do vizinho. Olhou para o grupo parado diante dela.
Contou-os um por um. Recordava suas histórias enquanto fazia isso. Foi então
percebeu que faltava um. Maldição! Será que tinha escapado. Não, não era
possível. Ergue-se num impulso e correu até a residência do caseiro. Era uma
casa pequena e simples. Ninguém morava lá no momento. Só servia para guardar
tranqueiras e... Eles. A porta estava devidamente trancada. Abriu-a. Entrou,
acionou as luzes. O cheiro era insuportável. Era melhor tomar uma resolução
antes que aquilo chamasse a atenção de alguém, afinal, nunca se sabia. Mas isso
não era o mais urgente. Caminhou por entre os corpos e logo o encontrou. Estava
num canto. Se tinha ido até ali, obviamente que ainda estava vivo. Pegou o
imenso facão na prateleira. Passou a ponta do instrumento no peito do homem. O
sujeito estrebuchou. Ali estava a comprovação. Morto de maneira nenhuma. Ele
tinha as mãos e os pés amarrados, uma fita adesiva na boca, sangrava de um
enorme ferimento na cabeça.
- Meu Deus. Já pensou se eu tivesse
te deixado aqui desamarrado. Pensando que você tinha morrido. Ai, ai. Capaz de
você sair e me causa problemas.
O homem fez barulhos tentando falar
alguma coisa. Certamente um pedido de clemencia.
- Você é duro de morrer, não? Dois
dias aqui, ferido, sem beber um gole d’água.
O outro continuava tentando dizer
alguma coisa.
Ela foi e tirou a fita adesiva.
- Por favor, moça, não me mate...
Nunca fiz aquelas coisas que a senhora falou.
- Sabia que dificilmente alguém
acredita nas menininhas quando elas contam o que vocês fazem.
- Mas eu não fiz nada com menininha
alguma...
- Minha fonte é segura.
- Pelo amor de Deus...
- Chega de conversa – ela gritou. –
Você já devia ter virado fantasma. Não te vi lá com os outros... Mas vou já
resolver isso...
O homem começou a gritar enquanto
ela ergueu o facão e o desceu com toda a força... Uma vez, duas vezes, três
vezes...
E ele parou de gritar. O sangue
agora saindo em profusão do seu pescoço.
- Agora vamos ver em quanto tempo
você aparece lá com os fantasmas dos outros tarados.
domingo, 23 de setembro de 2018
O AMIGO IMAGINÁRIO (Conto de terror)
Todo mundo já ouviu falar em amigos imaginários. Muita gente já teve um. É coisa bastante normal, saudável, desde que tenha certos limites. Fui levado a pensar que tivesse um também. Lembro bem o quanto me surpreendi quando ouvi os adultos dizendo que eu tinha amigo imaginário. Para mim ele era real. Aquelas afirmações me confundiram. Disse que eles estavam errados, mas ele insistiram e disseram que estava tudo bem. Acontece que não era um amigo imaginário. Não estava louco, nem estou. Eu era diferente apenas, sonhador e recluso. Meu amigo era real. Eu não podia ter ou demonstrar certezas para ninguém. Não possuía maturidade, um discernimento claro, e acabei me deixando levar pelas conclusões dos adultos. Se eles fossem mais atentos, teriam percebido que meu amigo não era nada imaginário. Não era coisa da minha cabeça como achavam. E acho que isso foi a razão para as desgraças que vieram, para tudo que veio depois. E afirmo, inicialmente, a culpa não foi minha. Gupta, me apareceu logo após virmos morar ali. Ele aparentava ter sete anos de idade como eu, mas quando eu o indaguei uma vez a cerca de idade, ele disse que eu não acreditaria se falasse quantos anos tinha, que era mais velho que qualquer adulto que eu conhecia. Eu achava que ele era tão real quanto qualquer outro garoto da rua. Como disse, foram os adultos que falaram que ele não existia. Então depois disso comecei a desconsiderar as coisas que ele dizia, o que fazíamos juntos. Para mim, nossas pequenas travessuras passaram a ter ainda menos importância, exatamente porque não era para valer. Tudo fazia parte do pacote da imaginação. Uma vez falei para Gupta sobre a opinião dos adultos e ele disse que era melhor assim. Nós nos ocupávamos principalmente em explorar. Perto da nossa casa havia uma velha fábrica abandonada e um razoável trecho de floresta. Eu morava nos limites da cidade e além da nossa casa, as vias se abriam em estradas e descampados. Era um tempo bastante diferente dos atuais. Não havia a violência como hoje, ainda mais numa zona de transição como aquela. Isso permitia que eu tivesse uma liberdade incrível. Um mundo de possibilidades que eu compartilhava com meu amigo estranho e camuflado dos adultos. Meus pais pensavam que eu era reservado. Um garoto por demais reservado, diferente dos demais. Dessa forma, minhas horas de vadiagem com meu amigo eram mais amplas do que deveriam ser. Minha família conhecia todo mundo naquela localidade, tinha muitos parentes por ali e por isso não se preocupavam. Sabiam que eu estaria na fábrica abandonada ou na floresta, caminhando ao lado do meu amigo inexistente. Gupta e eu fazíamos pequenas travessuras. Jogávamos bolas de gude em janelas, produzíamos pequenas fogueiras, caçávamos pequenos lagartos, pássaros e essas demais coisas que os meninos dessa idade gostam de fazer. Foi ele, sim, ele que começou com as pegadinhas mais pesadas. Convencido de que todo era uma fantasia, me deixei levar. Primeiro foram as bombas de São João que nós usamos para fazer pequenas demolições. Colocávamos as bombas nos pequenos buracos das paredes da fábrica, acendíamos, corríamos até chegar num lugar seguro e parávamos para ver a explosão produzir buracos enormes nas paredes. Depois vieram os pequenos furtos. A gente pegava trocados em toda e qualquer oportunidade. Depois gastava tudo em balas. As maldades com os animais pioraram. Enforcamos um gato um vez e depois tentamos colocar fogo em um cão usando gasolina. Gupta disse que tudo aquilo era uma preparação para fazer aquilo com um garoto. Eu olhei para ele e fiquei espantando em como eu era capaz de pensar naquilo. Se Gupta era apenas fruto de minha imaginação eu era um garoto mau pra valer. Ou então, Gupta era uma criança terrivelmente perturbada que não queria estar sozinho. Eu fiquei em dúvida e lhe respondi que não, que não era boa ideia. Ele passou dias e mais dias me perturbando com aquilo. Minha mente virou um turbilhão. Eu não dormia direito, tinha pesadelos e pensava: Tenho que apagar Gupta da minha mente. Tentei fugir dele, mas o encontrava na volta da escola, nas brincadeiras na rua e até mesmo no meu quarto. Estava deitado na minha cama olhando os aviõezinhos pendurados no teto, quando ele entrava súbito me chamando pra sair. Nessas horas minha mente virava um turbilhão. Ele estava ou ali ou era apenas fruto da minha imaginação? Numa manhã eu o encontrei na fábrica abandonada. Ele mesmo viera com Geninho e os apetrechos: gasolina e isqueiro. Eugênio ou Geninho, era um moleque que morava em frente a minha casa. Umas poucas vezes tínhamos brincado juntos. Inventamos de fazer uma fogueira. Ficara combinado que eu iria aspergir gasolina no garoto e Gupta usaria o isqueiro. Fiquei ali jogando coisas nas chamas, torcendo para que minha mente ou meu amigo não fizessem nada daquilo. Alguns minutos se passaram e eu já dava por resolvido aquilo quando ouvi as risadas de Gupta. Ele derramara todo o combustível em Geninho. O garoto, assustado, olhava para mim sem entender nada. Num impulso irracional, acendi o isqueiro e encostei no garoto ensopado de gasolina. O moleque acendeu e começou a gritar. Não foi nada parecido como nos filmes em que vemos um sujeito em chamas andando de um lado para outro balançando os braços. O garoto correu e ficou tentando abafar as chamas na parede mais próxima. Depois caiu no chão, rolou mais algumas mais vezes até o fogo se apagar. Isso não durou mais que um minuto. As chamava se foram, o garoto continuou gemendo por alguns instantes e depois parou. Corri para minha casa. Mas não demorou para que tudo fosse descoberto. Falei inúmeras vezes que a culpa era de Gupta, mas claro que ele não foi encontrado para receber o castigo por sua parcela de culpa. Como tinha apenas sete anos, os procedimentos foram outros. Fiz muita terapia, mas não me livrei do estigma de assassino. Mesmo que mudássemos de lugar, sempre alguém descobria meus feitos e tudo vinha à tona. Com o tempo acabei aceitando meu destino de assassino cruel e segui meu caminho. Gupta e eu voltamos a ser parceiros. Todos os dias eu agradeço a esse demônio que até hoje ajuda nos meus crimes. Tivesse alguém dito que essa coisa era uma criatura maligna real, eu não seria esse assassino cruel que sou hoje.
domingo, 16 de setembro de 2018
A BONECA (Conto de terror)
Em uma época da infância achei que estava enlouquecendo. Vivi uma situação em que não pude contar com ninguém. Somente eu e o mais absoluto horror na minha própria casa. Isso me fez temer pela minha vida. Encarei sozinha, um terror que pouca gente sequer ousar crer. Somente após alguns anos superei os acontecimentos a ponto de poder falar sobre o mesmo. Só não suporto ver ou ouvir historias semelhantes e não gosto de bonecos, bonecas. Isso desde os nove anos de idade. Não, não sonhei. Tão certo quanto respiro, tudo aconteceu e eu agradeceria a menor possibilidade de que eu tivesse sonhado com tudo. O tema recorrente das narrativas de terror, brinquedos possuídos, ainda mais no cinema, sempre me chama muito a atenção, mas isso provoca uma repulsa irresistível. Não que não me sinta atraída por histórias assustadoras. Como muitas pessoas, me empolgo em ver filme ou ler algo de tom sobrenatural, só essa temática, à parte, me é absolutamente execrável. Creio que saí incólume da experiência. Ficou apenas essa sequela: não suportar histórias de bonecos, bonecas enfeitiçados. Eu tinha oito anos. Meus pais trabalhavam fora o dia todo. Minha irmã, mais velha que eu sete anos, era distante, vivia suas aventuras de adolescente rebelde. Então eu vivia a minha infância sozinha. Não me importava muito e acho que se alguém me dissesse que eu era solitária naquela época, eu ficaria surpresa. Como toda menina, eu gostava de brincar com bonecas. Tinha várias. Talvez uma tentativa de compensação dos meus pais que, ganhavam um bom dinheiro, mas viviam sem muito tempo pra mim. Foi minha mãe que trouxe a boneca. Disse que seu nome era Vivian. Não questionei que a boneca já tivesse um nome. Ela era diferente das demais. Toda feita de pano, costurada a mão. Foi paixão a primeira vista. No mesmo dia, deixei todos os brinquedos de lado, e fiquei brincando só com Vivian. À noite meu pai me pôs na cama e eu abracei a minha nova amiga com bastante alegria. Lembro que meu pai perguntou: - Qual o nome dela? - Achei muito atencioso da parte dele perceber que a boneca era nova. - Essa é a Vivian - eu disse. - Onde você arranjou ela? - Achei estranha a pergunta e disse que tinha sido minha mãe, claro. Ele deu de ombros, me beijou na testa, desejou boa noite e se foi. Ele era um homem muito atencioso, apesar de quase não ter tempo para mim. Eu recordo que apertei Vivian contra meu peito e senti ela quente e pulsante. Tive pesadelos naquela noite. Algo que não lembro mais, depois desses anos todos. Sei que isso foi se repetindo. E uma noite acordei e vi que a boneca não estava comigo na cama. Vivian estava sobre o criado mudo e seus olhos pareciam acesos. Fiquei absolutamente paralisada e não tive coragem de pedir ajuda ou sair dali. Cobri o rosto com o lençol e depois olhei por uma pequena brecha. A boneca continuava ali e seus olhos pareciam ainda mais brilhantes. Eu tremia toda, dos pés a cabeça. Chorava, mas sem emitir um único gemido. Fiquei acordada até não poder mais. Sempre fechando e abrindo os olhos para conferir o pavor ali, manifesto no meu brinquedo. Repeti parte das rezas que tinha aprendido e dormi de cansaço depois de algum tempo. No outro dia fiquei pensando em como me livrar da boneca, mas na minha timidez de criança não tinha coragem de fazer algo mais radical como jogar a boneca no lixo ou destruí-la. Acreditava que mamãe ficaria brava comigo por isso, era certo que ela não acreditaria naquela história de boneca de olhos acesos. Bruna, minha irmã quando estava em casa, passava o tempo pendurada no telefone e simplesmente ignoraria qualquer pedido de ajuda. Ainda assim tomei uma providência que julguei eficiente. Joguei Vivian na garagem, dentro da mala de ferramentas de papai. Uma mala com fechos que eram difíceis de abrir. A noite acordei pela madruga e vi a boneca olhando para mim. E então por um mês eu e a boneca jogamos aquele jogo: Eu a escondia nos mais diversos cantos e ela voltava pra o meu quarto e me despertava com seus olhos terríveis. Eu sempre sentia uma presença ruim no quarto e quando dormia, tinha sempre pesadelos. Comecei a ir mal na escola e a ficar doente. Bá, a empregada da minha casa, uma espécie de segunda mãe pra mim, me olhava com preocupação. - Hoje ela quase não comeu nada, D. Marta - dizia para minha mãe. Eu sabia que tudo era culpa da boneca e que nenhum adulto acreditaria em mim. Uma vez sonhei que Vivian tinha matado toda a minha família. No sonho eu chegava até a sala e via os corpos de meus pais, da minha irmã e de Bá, amontados, despidos e ensaguentados. Aquela era uma imagem por demais cruel para simplesmente brotar da minha imaginação. Hoje sei disso. Na época eu apenas senti pavor. Eu acordei e ouvi a voz do que quer que estivesse naquela boneca. A mensagem: eu vou matar você. Nesse dia corri e fui para o quarto dos meus pais. Como eu nunca havia feito isso, papai - acordado àquela hora - encarou como algo normal. Apenas disse que ia deixar eu ficar com a condição de que isso não se repetisse. Mas o medo fez nascer também a determinação. No outro dia, num domingo a tarde, eu levei Vivian até o quintal, derramei álcool nela e pus fogo. Aquela coisa se contorceu e jogou um pedaço de pano flamejante que atingiu meu pé. Fez uma queimadura pequena, mas profunda. Ainda hoje tenho a marca. Dormi muito bem aquela noite. Esperei minha mãe perguntar sobre a boneca, mas ela sequer percebeu. Na verdade, ela parecia mais distante naqueles dias. Havia tantos brinquedos, só na minha mente de criança que minha mãe ia sentir falta de uma boneca específica. Logo perdi o interesse por bonecas e bonecos. Guardei-os todos numa caixa sob olhos espantados dos meus familiares. Só me distraia com livros e os pequenos pôneis de brinquedo que enfeitavam minha estante. Disse pra minha mãe que não queria mais brincar com bonecas. Ela nunca questionou meu desejo e me encheu de livros e outros pôneis. Anos depois quando contei para ela essa história, ela disse que lembrava da boneca, mas que não tinha me dado. Também sabia que não havia sido meu pai, mas acreditava que tinha sido a Bruna ou a Bá. - Foi a senhora que me deu, tenho certeza - falei. Ela disse que era uma loucura, pois lembrava que na época que tinha visto a boneca de pano, fora logo depois de ficar mais de uma semana sem vir para casa, pois tivera sérios problemas com papai e havia ido pra casa da irmã.
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