domingo, 30 de setembro de 2018

FÁBRICA DE FANTASMAS (Conto de terror)


Ela chegou sozinha à chácara. Foi dirigindo tranquila, conhecia bem a região, o caminho irregular, cercado de mato fechado. Frequentava o lugar desde criança. Tinha sido a casa de campo da família dela. Finais de semana divertidos que não podia esquecer. Churrascos, banhos de piscina, fogueiras a noite e até mesmo dormir fora da casa, num pequeno acampamento com irmãos e primos. Quando o tempo passou, veio o descuido da propriedade, todo mundo foi se desgostando do lugar. Vieram às casas de praia dos tios, dos amigos de seu pai que tomaram o tempo de lazer dos finais de semana. Nova empolgação: som de mar, piscinas maiores ao invés de céus estrelados e sons de grilos a noite. Então o pai comprou uma casa bem perto da praia e a chácara ficou esquecida. Era bom ir à praia com a família, mas ela nunca esqueceu do campo, da piscina modesta, das noites frias, do cheiro do mato e histórias assustadoras perto do fogo. Quando se tornou adulta comprou a chácara do pai. Não falava com o velho havia anos, mas foi uma negociação rápida e o preço muito bom. Era o mínimo que ele podia fazer depois de anos de desentendimento. Tinha resolvido os principais problemas da propriedade. Agora aquele era seu santuário particular. Vinha passar muitos finais de semana ali. As vezes sozinha. Não importava que lhe dissessem que era perigoso. Ouvira casos de invasões às propriedades próximas. Pessoas tinham sido roubadas, espancadas, estupradas. A violência exacerbada dos centros urbanos chegava nas regiões mais afastadas com rapidez espantosa. Mas não ia se atormentar com isso. Desceu do carro, abriu as duas imensas metades do portão de madeira, entrou no automóvel e o estacionou além dos muros. Fechou tudo e se sentiu em seu mundo. Seguiu pelo caminho cercado de flores e pitangueiras que formavam uma cerca viva. Se sentia feliz como não podia se sentir em lugar algum. Ela chegou até a porta da casa principal e parou ao ouvir algo. Olhou para trás. Será que havia alguém ali? Se sentiu observada. Ultimamente isso tinha sido comum naquele lugar. Sempre a sensação clara de que alguém estava ali observando tudo que ela fazia. Mesmo quando ia no banheiro, a presença não desvanecia. 
Estava preparando um lanche na cozinha quando o som de pancadas a fez para súbito. Ficou ouvindo, olhos no ar. Foi até a porta da cozinha e observou. Diante dela somente as árvores, o som distante dos pássaros e do vento. Era um dia claro de sol. Tudo na mais perfeita normalidade não fossem aquele barulho. Voltou a cozinha, terminou de preparar o sanduíche e foi até a varanda. Sentou-se e ficou comendo enquanto observava a paisagem à sua frente. Haviam duas mangueiras frondosas, pés de goiaba, acerola e as belas muretas feitas com as pitangueiras. Lembrou que em determinada época do ano – não lembrava o mês – quando havia pitangas maduras, o cheiro era uma coisa soberba. Terminou de comer o sanduíche e bebeu o ultimo gole de refrigerante. Acendeu um cigarro e ficou fumando, se sentindo ainda mais relaxada. Aquele era seu reino, suas melhores lembranças de infância, seu porto seguro. Na chácara aquilo nunca acontecera. Sim. Sabia que isso era mais por causa da quantidade de pessoas do que pelo local em si, mas não importava. Deu mais um trago no cigarro e se sentiu zonza. Que sensação mais relaxante, pensou. E as coisas ainda estavam apenas começando. Mais tarde pretendia ter uma longa conversa com a garrafa de vinho que trouxera. Iam ser só ela, a bebida, os cigarros, as boas lembranças... e aquele homem que vinham agora cruzando metade da chácara vindo ao seu encontro? Ela fez um movimento a frente com a cabeça e encarou o homem que vinha caminhando e sumiu diante dos seus olhos. Agora tinha sido claro. Não fora uma pancada a esmo, mas tinha visto mesmo o sujeito. Apagou o cigarro no cinzeiro, pegou o prato, o copo e entrou em casa.
No quarto tirou toda a roupa e ficou se olhando nua no espelho. Provavelmente a estavam observando, ela pensou. Não era de se espantar. Mesmo quando era criança passava por isso. E isso fora o princípio de tudo. Colocou o biquíni e saiu.
Saiu da piscina, sentou na borda e inclinou a cabeça para trás de modo que pudesse sentir ainda melhor o sol. Era pouco mais de meio dia, um sol não muito aconselhável, mas tudo bem. Não era de exagerar. Tinha os olhos fechados, sentindo os raios de sol lhe aquecendo a pele e percebendo a presença deles todos ali. Agora eles tinham perdido a timidez. Se acercavam dela sem receio nenhum. Tinha certeza de que se abrisse os olhos podia ver a todos. Mas não fez isso. Pulou novamente na piscina e ficou nadando de uma borda a outra. Depois saiu, se envolveu na toalha, acendeu mais um cigarro e ficou fumando sentada numa das imensas cadeiras inclinadas. Olhou e viu alguns deles ao longe. Ou seria sua visão que estava lhe pregando peças? Apertou os olhos na direção em que julgava que eles estavam. Sim, havia alguns ali. Não precisava ter medo. Tivera medo muitas vezes na vida. Aqueles outros, sim, tinham lhe proporcionado medo. Não mais. Fazia tempo que ela deixara de ser uma garota indefesa. O último engraçadinho tinha levado um tapa na cara, na frente de todo mundo.
Depois de uma longa e refrescante ducha, ela armou a rede na varanda e dormiu como se estivesse deitada em nuvens. Aquilo sim, um pequeno pedaço do paraíso. Ela sozinha, no seu lugar favorito no mundo inteiro. Acordou no fim da tarde e continuou deitada, observando a paisagem. Não sabia dizer porque, mas havia algo de melancólico na própria felicidade. Agora com a luz diminuindo, ficaria ainda mais fácil vê-los. Tudo isso era um peso. Mas tudo bem.  Com um impulso do pé na parede, começou a se balançar e logo lembrou que nunca dormia de rede em casa. Ali tudo, bem, mas em casa dava uma sensação ruim. Era na rede que ele a atacara muitas vezes. Ele e outros. Felizmente na chácara tudo ficava anulado. E não era apenas porque na infância se sentia segura ali, mas porque a justiça era feita. Levantou-se num impulso, foi até a sala, pegou o vinho, os cigarros. Depois foi até a cozinha. Cortou um pedaço de queijo coalho. Tira gosto perfeito. Fui até a varanda e ficou bebendo, comendo e fumando. Depois de um tempo, ligou o som. A música tomou conta do ambiente. Escurecia. A melhor hora estava chegando.
Não estava nem embriagada, mas já via eles chegando. Eles ficavam parados no gramado, entre a piscina e a varanda, diante dela. Simplesmente a observavam com olhar resignado. Não podiam fazer nada. Talvez a estivessem olhando com ódio, mas o que poderiam fazer? Sorriu.
- Agora vocês não podem mais fazer nada com ninguém.
Quem dera existisse alguém como ela quando era uma criança. Não teria problema seu pai ter entrado na lista. Alguns tios, primos. O desgraçado do vizinho. Olhou para o grupo parado diante dela. Contou-os um por um. Recordava suas histórias enquanto fazia isso. Foi então percebeu que faltava um. Maldição! Será que tinha escapado. Não, não era possível. Ergue-se num impulso e correu até a residência do caseiro. Era uma casa pequena e simples. Ninguém morava lá no momento. Só servia para guardar tranqueiras e... Eles. A porta estava devidamente trancada. Abriu-a. Entrou, acionou as luzes. O cheiro era insuportável. Era melhor tomar uma resolução antes que aquilo chamasse a atenção de alguém, afinal, nunca se sabia. Mas isso não era o mais urgente. Caminhou por entre os corpos e logo o encontrou. Estava num canto. Se tinha ido até ali, obviamente que ainda estava vivo. Pegou o imenso facão na prateleira. Passou a ponta do instrumento no peito do homem. O sujeito estrebuchou. Ali estava a comprovação. Morto de maneira nenhuma. Ele tinha as mãos e os pés amarrados, uma fita adesiva na boca, sangrava de um enorme ferimento na cabeça.
- Meu Deus. Já pensou se eu tivesse te deixado aqui desamarrado. Pensando que você tinha morrido. Ai, ai. Capaz de você sair e me causa problemas.
O homem fez barulhos tentando falar alguma coisa. Certamente um pedido de clemencia.
- Você é duro de morrer, não? Dois dias aqui, ferido, sem beber um gole d’água.
O outro continuava tentando dizer alguma coisa.
Ela foi e tirou a fita adesiva.
- Por favor, moça, não me mate... Nunca fiz aquelas coisas que a senhora falou.
- Sabia que dificilmente alguém acredita nas menininhas quando elas contam o que vocês fazem.
- Mas eu não fiz nada com menininha alguma...
- Minha fonte é segura.
- Pelo amor de Deus...
- Chega de conversa – ela gritou. – Você já devia ter virado fantasma. Não te vi lá com os outros... Mas vou já resolver isso...
O homem começou a gritar enquanto ela ergueu o facão e o desceu com toda a força... Uma vez, duas vezes, três vezes...
E ele parou de gritar. O sangue agora saindo em profusão do seu pescoço.
- Agora vamos ver em quanto tempo você aparece lá com os fantasmas dos outros tarados.

domingo, 23 de setembro de 2018

O AMIGO IMAGINÁRIO (Conto de terror)

Todo mundo já ouviu falar em amigos imaginários. Muita gente já teve um. É coisa bastante normal, saudável, desde que tenha certos limites. Fui levado a pensar que tivesse um também. Lembro bem o quanto me surpreendi quando ouvi os adultos dizendo que eu tinha amigo imaginário. Para mim ele era real. Aquelas afirmações me confundiram. Disse que eles estavam errados, mas ele insistiram e disseram que estava tudo bem. Acontece que não era um amigo imaginário. Não estava louco, nem estou. Eu era diferente apenas, sonhador e recluso. Meu amigo era real. Eu não podia ter ou demonstrar certezas para ninguém. Não possuía maturidade, um discernimento claro, e acabei me deixando levar pelas conclusões dos adultos. Se eles fossem mais atentos, teriam percebido que meu amigo não era nada imaginário. Não era coisa da minha cabeça como achavam. E acho que isso foi a razão para as desgraças que vieram, para tudo que veio depois. E afirmo, inicialmente, a culpa não foi minha. Gupta, me apareceu logo após virmos morar ali. Ele aparentava ter sete anos de idade como eu, mas quando eu o indaguei uma vez a cerca de idade, ele disse que eu não acreditaria se falasse quantos anos tinha, que era mais velho que qualquer adulto que eu conhecia. Eu achava que ele era tão real quanto qualquer outro garoto da rua. Como disse, foram os adultos que falaram que ele não existia. Então depois disso comecei a desconsiderar as coisas que ele dizia, o que fazíamos juntos. Para mim, nossas pequenas travessuras passaram a ter ainda menos importância, exatamente porque não era para valer. Tudo fazia parte do pacote da imaginação. Uma vez falei para Gupta sobre a opinião dos adultos e ele disse que era melhor assim. Nós nos ocupávamos principalmente em explorar. Perto da nossa casa havia uma velha fábrica abandonada e um razoável trecho de floresta. Eu morava nos limites da cidade e além da nossa casa, as vias se abriam em estradas e descampados. Era um tempo bastante diferente dos atuais. Não havia a violência como hoje, ainda mais numa zona de transição como aquela. Isso permitia que eu tivesse uma liberdade incrível. Um mundo de possibilidades que eu compartilhava com meu amigo estranho e camuflado dos adultos. Meus pais pensavam que eu era reservado. Um garoto por demais reservado, diferente dos demais. Dessa forma, minhas horas de vadiagem com meu amigo eram mais amplas do que deveriam ser. Minha família conhecia todo mundo naquela localidade, tinha muitos parentes por ali e por isso não se preocupavam. Sabiam que eu estaria na fábrica abandonada ou na floresta, caminhando ao lado do meu amigo inexistente. Gupta e eu fazíamos pequenas travessuras. Jogávamos bolas de gude em janelas, produzíamos pequenas fogueiras, caçávamos pequenos lagartos, pássaros e essas demais coisas que os meninos dessa idade gostam de fazer. Foi ele, sim, ele que começou com as pegadinhas mais pesadas. Convencido de que todo era uma fantasia, me deixei levar. Primeiro foram as bombas de São João que nós usamos para fazer pequenas demolições. Colocávamos as bombas nos pequenos buracos das paredes da fábrica, acendíamos, corríamos até chegar num lugar seguro e parávamos para ver a explosão produzir buracos enormes nas paredes. Depois vieram os pequenos furtos. A gente pegava trocados em toda e qualquer oportunidade. Depois gastava tudo em balas. As maldades com os animais pioraram. Enforcamos um gato um vez e depois tentamos colocar fogo em um cão usando gasolina. Gupta disse que tudo aquilo era uma preparação para fazer aquilo com um garoto. Eu olhei para ele e fiquei espantando em como eu era capaz de pensar naquilo. Se Gupta era apenas fruto de minha imaginação eu era um garoto mau pra valer. Ou então, Gupta era uma criança terrivelmente perturbada que não queria estar sozinho. Eu fiquei em dúvida e lhe respondi que não, que não era boa ideia. Ele passou dias e mais dias me perturbando com aquilo. Minha mente virou um turbilhão. Eu não dormia direito, tinha pesadelos e pensava: Tenho que apagar Gupta da minha mente. Tentei fugir dele, mas o encontrava na volta da escola, nas brincadeiras na rua e até mesmo no meu quarto. Estava deitado na minha cama olhando os aviõezinhos pendurados no teto, quando ele entrava súbito me chamando pra sair. Nessas horas minha mente virava um turbilhão. Ele estava ou ali ou era apenas fruto da minha imaginação? Numa manhã eu o encontrei na fábrica abandonada. Ele mesmo viera com Geninho e os apetrechos: gasolina e isqueiro. Eugênio ou Geninho, era um moleque que morava em frente a minha casa. Umas poucas vezes tínhamos brincado juntos. Inventamos de fazer uma fogueira. Ficara combinado que eu iria aspergir gasolina no garoto e Gupta usaria o isqueiro. Fiquei ali jogando coisas nas chamas, torcendo para que minha mente ou meu amigo não fizessem nada daquilo. Alguns minutos se passaram e eu já dava por resolvido aquilo quando ouvi as risadas de Gupta. Ele derramara todo o combustível em Geninho. O garoto, assustado, olhava para mim sem entender nada. Num impulso irracional, acendi o isqueiro e encostei no garoto ensopado de gasolina. O moleque acendeu e começou a gritar. Não foi nada parecido como nos filmes em que vemos um sujeito em chamas andando de um lado para outro balançando os braços. O garoto correu e ficou tentando abafar as chamas na parede mais próxima. Depois caiu no chão, rolou mais algumas mais vezes até o fogo se apagar. Isso não durou mais que um minuto. As chamava se foram, o garoto continuou gemendo por alguns instantes e depois parou. Corri para minha casa. Mas não demorou para que tudo fosse descoberto. Falei inúmeras vezes que a culpa era de Gupta, mas claro que ele não foi encontrado para receber o castigo por sua parcela de culpa. Como tinha apenas sete anos, os procedimentos foram outros. Fiz muita terapia, mas não me livrei do estigma de assassino. Mesmo que mudássemos de lugar, sempre alguém descobria meus feitos e tudo vinha à tona. Com o tempo acabei aceitando meu destino de assassino cruel e segui meu caminho. Gupta e eu voltamos a ser parceiros. Todos os dias eu agradeço a esse demônio que até hoje ajuda nos meus crimes. Tivesse alguém dito que essa coisa era uma criatura maligna real, eu não seria esse assassino cruel que sou hoje.

domingo, 16 de setembro de 2018

A BONECA (Conto de terror)

Em uma época da infância achei que estava enlouquecendo. Vivi uma situação em que não pude contar com ninguém. Somente eu e o mais absoluto horror na minha própria casa. Isso me fez temer pela minha vida. Encarei sozinha, um terror que pouca gente sequer ousar crer. Somente após alguns anos superei os acontecimentos a ponto de poder falar sobre o mesmo. Só não suporto ver ou ouvir historias semelhantes e não gosto de bonecos, bonecas. Isso desde os nove anos de idade. Não, não sonhei. Tão certo quanto respiro, tudo aconteceu e eu agradeceria a menor possibilidade de que eu tivesse sonhado com tudo. O tema recorrente das narrativas de terror, brinquedos possuídos, ainda mais no cinema, sempre me chama muito a atenção, mas isso provoca uma repulsa irresistível. Não que não me sinta atraída por histórias assustadoras. Como muitas pessoas, me empolgo em ver filme ou ler algo de tom sobrenatural, só essa temática, à parte, me é absolutamente execrável. Creio que saí incólume da experiência. Ficou apenas essa sequela: não suportar histórias de bonecos, bonecas enfeitiçados. Eu tinha oito anos. Meus pais trabalhavam fora o dia todo. Minha irmã, mais velha que eu sete anos, era distante, vivia suas aventuras de adolescente rebelde. Então eu vivia a minha infância sozinha. Não me importava muito e acho que se alguém me dissesse que eu era solitária naquela época, eu ficaria surpresa. Como toda menina, eu gostava de brincar com bonecas. Tinha várias. Talvez uma tentativa de compensação dos meus pais que, ganhavam um bom dinheiro, mas viviam sem muito tempo pra mim. Foi minha mãe que trouxe a boneca. Disse que seu nome era Vivian. Não questionei que a boneca já tivesse um nome. Ela era diferente das demais. Toda feita de pano, costurada a mão. Foi paixão a primeira vista. No mesmo dia, deixei todos os brinquedos de lado, e fiquei brincando só com Vivian. À noite meu pai me pôs na cama e eu abracei a minha nova amiga com bastante alegria. Lembro que meu pai perguntou: - Qual o nome dela? - Achei muito atencioso da parte dele perceber que a boneca era nova. - Essa é a Vivian - eu disse. - Onde você arranjou ela? - Achei estranha a pergunta e disse que tinha sido minha mãe, claro. Ele deu de ombros, me beijou na testa, desejou boa noite e se foi. Ele era um homem muito atencioso, apesar de quase não ter tempo para mim. Eu recordo que apertei Vivian contra meu peito e senti ela quente e pulsante. Tive pesadelos naquela noite. Algo que não lembro mais, depois desses anos todos. Sei que isso foi se repetindo. E uma noite acordei e vi que a boneca não estava comigo na cama. Vivian estava sobre o criado mudo e seus olhos pareciam acesos. Fiquei absolutamente paralisada e não tive coragem de pedir ajuda ou sair dali. Cobri o rosto com o lençol e depois olhei por uma pequena brecha. A boneca continuava ali e seus olhos pareciam ainda mais brilhantes. Eu tremia toda, dos pés a cabeça. Chorava, mas sem emitir um único gemido. Fiquei acordada até não poder mais. Sempre fechando e abrindo os olhos para conferir o pavor ali, manifesto no meu brinquedo. Repeti parte das rezas que tinha aprendido e dormi de cansaço depois de algum tempo. No outro dia fiquei pensando em como me livrar da boneca, mas na minha timidez de criança não tinha coragem de fazer algo mais radical como jogar a boneca no lixo ou destruí-la. Acreditava que mamãe ficaria brava comigo por isso, era certo que ela não acreditaria naquela história de boneca de olhos acesos. Bruna, minha irmã quando estava em casa, passava o tempo pendurada no telefone e simplesmente ignoraria qualquer pedido de ajuda. Ainda assim tomei uma providência que julguei eficiente. Joguei Vivian na garagem, dentro da mala de ferramentas de papai. Uma mala com fechos que eram difíceis de abrir. A noite acordei pela madruga e vi a boneca olhando para mim. E então por um mês eu e a boneca jogamos aquele jogo: Eu a escondia nos mais diversos cantos e ela voltava pra o meu quarto e me despertava com seus olhos terríveis. Eu sempre sentia uma presença ruim no quarto e quando dormia, tinha sempre pesadelos. Comecei a ir mal na escola e a ficar doente. Bá, a empregada da minha casa, uma espécie de segunda mãe pra mim, me olhava com preocupação. - Hoje ela quase não comeu nada, D. Marta - dizia para minha mãe. Eu sabia que tudo era culpa da boneca e que nenhum adulto acreditaria em mim. Uma vez sonhei que Vivian tinha matado toda a minha família. No sonho eu chegava até a sala e via os corpos de meus pais, da minha irmã e de Bá, amontados, despidos e ensaguentados. Aquela era uma imagem por demais cruel para simplesmente brotar da minha imaginação. Hoje sei disso. Na época eu apenas senti pavor. Eu acordei e ouvi a voz do que quer que estivesse naquela boneca. A mensagem: eu vou matar você. Nesse dia corri e fui para o quarto dos meus pais. Como eu nunca havia feito isso, papai - acordado àquela hora - encarou como algo normal. Apenas disse que ia deixar eu ficar com a condição de que isso não se repetisse. Mas o medo fez nascer também a determinação. No outro dia, num domingo a tarde, eu levei Vivian até o quintal, derramei álcool nela e pus fogo. Aquela coisa se contorceu e jogou um pedaço de pano flamejante que atingiu meu pé. Fez uma queimadura pequena, mas profunda. Ainda hoje tenho a marca. Dormi muito bem aquela noite. Esperei minha mãe perguntar sobre a boneca, mas ela sequer percebeu. Na verdade, ela parecia mais distante naqueles dias. Havia tantos brinquedos, só na minha mente de criança que minha mãe ia sentir falta de uma boneca específica. Logo perdi o interesse por bonecas e bonecos. Guardei-os todos numa caixa sob olhos espantados dos meus familiares. Só me distraia com livros e os pequenos pôneis de brinquedo que enfeitavam minha estante. Disse pra minha mãe que não queria mais brincar com bonecas. Ela nunca questionou meu desejo e me encheu de livros e outros pôneis. Anos depois quando contei para ela essa história, ela disse que lembrava da boneca, mas que não tinha me dado. Também sabia que não havia sido meu pai, mas acreditava que tinha sido a Bruna ou a Bá. - Foi a senhora que me deu, tenho certeza - falei. Ela disse que era uma loucura, pois lembrava que na época que tinha visto a boneca de pano, fora logo depois de ficar mais de uma semana sem vir para casa, pois tivera sérios problemas com papai e havia ido pra casa da irmã.

domingo, 9 de setembro de 2018

INVOCAÇÕES (Conto de terror)

Ele aprendeu a conjurar os mortos quando tinha 17 anos. Fred perdeu o pai e pouco tempo depois se envolveu com um sujeito que dizia saber tudo sobre o mundo dos espíritos. Eles tiveram um intenso relacionamento amoroso e o homem o ensinara sobre necromancia e outros assuntos do ocultismo. O relacionamento foi intenso, durou dois anos. Mas o casal revezou momentos do mais sublime amor até demonstração de ódio e obsessão. Eles se separaram em meio a brigas e escândalos. E nunca mais se viram. Fred ficou com um sentimento de solidão e decidiu pôr em prática os ensinamentos do ex-amante. Movido pela e a saudade que tinha do pai - a única pessoa no mundo que o compreendera de verdade -, fez o ritual e o contatou numa madruga em seu quarto. Nunca o fizera antes por causa de receios que ele mesmo nunca soube explicar ou, simplesmente, porque não era o tempo. Agora, se sentindo sozinho no mundo resolvera tentar falar com o pai. Foi uma felicidade imensa. Ali estava a prova de que existia uma outra vida, que seu ex, apesar dos pesares, era realmente um homem de conhecimentos incríveis e, o mais importante, que podia ter algum consolo e esperança na vida. Fred viu seu pai tal como ele era quando vivo e saudável. O fantasma lhe disse que sentia sua falta, que estava num bom lugar, que esquecera todas as suas mágoas da vida, que estava feliz porque ele tinha se tornado um bom rapaz. Também pediu que se aproximasse de sua mãe, mesmo que tivesse que ceder em alguns pontos, pois sabia que o relacionamento deles era difícil. Por fim desejou o melhor para o filho e se foi. Fred ficou em êxtase. Daquele dia em diante não se sentiu mais desamparado. Mesmo não conseguindo acertar as coisas com sua mãe - ela não aceitava sua homossexualidade - sua vida seguiu com uma força de caráter e ânimo surpreendentes. Fez o que pôde e relação a sua genitora. Forma inúmeras as tentativas que ele fez de se conciliarem. Não houve resultado e a relação deles ficou reduzida a encontros furtivos de reuniões familiares.  Foi na idade de 38 anos que Fred voltou a consultar os mortos. Nessa ocasião, estava bastante abalado por causa da morte de seu companheiro depois de cinco anos juntos. Uma relação bastante diferente dos seus anos conturbados de jovem. Os dois se consideravam almas gêmeas e a morte de Erasmo trouxe uma amargura tão grande que Fred se viu a beira de uma terrível depressão. Seu companheiro morreu de uma enfermidade súbita que parou seus rins. Uma enfermidade rara e não totalmente inexplicada. Bem no início, lembrou de seus conhecimentos, mas imaginou que invocar Erasmo não lhe trariam muito consolo. Uma visão turva do espirito do seu amado talvez lhe trouxesse mais saudade e tristeza. Além do mais, lembrava de uma específica instrução sobre invocar os mortos: não tentar contactar desencarnados recentes. Mas aos poucos, sua cautela e tristeza deram lugar ao desespero e a urgência. Em seu apartamento, no quarto que fora dele e do companheiro, fez o ritual e o invocou intensamente. A princípio a velha magia pareceu ineficiente. A lembrança do seu incrível contato na juventude, uma ilusão que sua mente criara. Mas então ele insistiu e dessa vez com mais fé. O clima no quarto ficou tremendamente frio. As coisas começaram a sair do lugar e Fred achou que o fenômeno era bastante diferente daquele que fizer para contactar seu pai. O homem se sentiu observado por olhos invisíveis na sua retaguarda. Aquilo lhe deu um arrepio que fez sua carne tremer. Ali estava a porta de entrada para outros mundos. Erasmo entrou no quarto caminhando como costumava fazer em seus dias de vida quando entrava ali, vindo casualmente de um dos cômodos do apartamento. Fred ficou extasiado, mas logo percebeu que o fantasma do homem que amara não parecia contente. Erasmo contou que tinha sido assassinado. Concluíra no além, depois de muito sofrimento, que a mãe de Fred o envenenara. Dito isso sua imagem se alterou de uma maneira assustadora. Com um vento forte e objetos saindo do lugar, desapareceu. Fred ficou absolutamente chocado. Não podia crer naquela paródia grotesca de Hamlet. Vieram dias cinzentos na vida de Fred. Ele faltou o emprego, passava dias dormindo e quando acordava chorava desesperadamente. O tempo todo sozinho com aquela dúvida e suspeita: tinha uma mãe assassina ou invocara um demônio ao invés do espectro do namorado? Os dias se passaram e os pensamentos do homem foram se voltando para sua genitora. Ela realmente odiara Erasmo em vida, odiara que seu filho fosse homossexual e em sua mentalidade perversa, matar o namorado do filho seria uma resolução prática e justa. Fred também lembrou que a velha era habilidosa em fazer chás e poções. Erasmo fumava e tomava muitos cafés. E continuava com seu hábito quando visitavam a mãe de Fred.  Um dia antes de cair doente, os dois estiveram lá numa das raras e estranhas visitas do casal. Então, num melancólico domingo, ele foi até o quarto da mãe que dormia a sesta. Usando um travesseiro ele a sufocou com lágrimas nos olhos. Matou a megera, a mulher que a colocara no mundo, mas que nunca o amara, que o desprezara desde sempre. Assassinou por vingança, por ódio, por tristeza, desespero e desgraça... O fez com alegria, com raiva, com tristeza, pavor e remorso. Aquele ser sagrado e maldito que o rejeitara, que desprezara seu pai, que lhe dera vida, mas o impedira o amor de todas as formas. Foi para casa chorar e esperar a notícia. A empregada ligou no fim da tarde. "Fui no quarto acordar sua mãe, Seu Fred, mas ela..." Ele foi até lá e providenciou as coisas. Depois voltou para casa. Invocou a alma do namorado. A aparição se transformou numa terrível criatura que ele fecho os olhos para não ver. Aquilo gargalhou, depois simplesmente sumiu. Ele entrou em pânico. Passou a noite acordado, remoendo seu crime, tomando goles de uísque e fumando cigarros - hábitos raros em sua vida. Dormiu no sofá. Acordou com o telefone tocando ao meio dia. Atendeu: era o delegado de polícia, responsável pelos crimes no bairro que sua mãe morava. Ele precisava ir à delegacia o mais rápido possível. Depois que desligou o telefone, Fred levou as mãos ao rosto e chorou. Quando ergueu os olhos, o demônio estava diante dele: era uma caricatura de Erasmo, com olhos enormes e boca larga, como um palhaço monstruoso. E gargalhava, gargalhava muito.

domingo, 2 de setembro de 2018

MESTRE DAS SOMBRAS (Conto de terror)

"Eu só escrevo as histórias!", gritou Carlo Moon enquanto o sujeito que comandava, puxou seu cabelo e apertou o cano da pistola contra seu rosto. Ele estava sentado em uma cadeira, os pés atados. A tortura já durava algumas horas e ameaçava entrar madrugada adentro. O chefe disse que ele iria morrer se não obedecesse. O outro elemento concordou com um movimento de cabeça. O terceiro invasor, pálido, sentado numa cadeira observava a tudo com ar desanimado. A coisa estava tensa e dava sinais de que podiam piorar. O escritor tentou explicar mais uma vez que não tinha poderes, não podia fazer nada que eles pediam, era tudo ficção. Os dois bandidos entreolharam-se. Houve um acordo comum sem palavras. Não acreditavam no homem. Ele estava só enrolando, tentando ganhar algum tempo e ia acabar pagando com a vida por causa disso. Fazer o quê? Era aquele infeliz que estava querendo o pior. Não custava nada ele pedir ajuda do além para curar o irmão do que o comandava. O rapaz estava morrendo, desenganado pelos médicos na flor da idade. Aquele escritor filho da puta sempre tivera tudo. Eles tinham se conhecido quando crianças. Mesmo bairro. Carlo Moon sempre fora o garoto mais rico da rua, vivia exibindo seus brinquedos e roupas caras. Quando adolescente montou uma banda de rock e ganhou todas as meninas do bairro. Para Esdras e Samuel, nada. Só a mãe religiosa que não obtinha do Deus que venerava, comida suficiente para a família. E ainda por cima tinham de ir à igreja, agradecer por nada. Carlo vivendo sem religião com camisas pretas de caveiras, cada vez mais próspero. Depois inventou de escrever histórias de terror. Fez um pacto com o bicho - dizia isso pra todo mundo - e começou a vender livros como garrafas de água mineral na praia. Rico, famoso, o maior escritor de histórias de terror do Brasil, um dos mais vendidos, comparado ao Stephen King. As porcarias dos livros traduzidos para várias línguas. Mudou-se para uma velha mansão com fama de assombrada num dos bairros mais ricos e antigos da cidade. Eu sou Carlo Moon que fala direto com as trevas, era seu dístico . Muita gente acreditava que tivesse poderes além do talento para escrever. Tinha de fato um pacto com o príncipe das trevas. Consolidou sua fama. Enquanto isso, Esdras e Samuel foram além no mundo do crime, roubos ousados, tráfico de drogas, assassinatos de aluguel. Pela primeira vez tiveram algum dinheiro na vida. Nem Deus e nem o Diabo ajudando em nada. Tudo por conta deles mesmos. Colocando a própria pele à prova. Escaparam de poucas e boas. E então veio a porcaria de um câncer raro e agressivo no irmão mais novo. Sem jeito. Mas havia uma chance: aquele escritor maldito que obtinha o que queria das forças sobrenaturais. Foi então que Esdras, o comparsa Vitinho e o irmão foram até a mansão e a invadiram. Não iriam roubar absolutamente nada, nem fazer mal a ninguém, a não ser que fosse extremamente necessário. Infelizmente o escritor estava dificultando as coisas. Esdras argumentou mais uma vez que não custava nada que ele curasse o irmão. Era algo que podia obter. Carlo olhou de Esdras para Vitinho. "Vocês tem noção do que estão pedindo? Isso é ridículo, caras. Esse lance de pacto com o capeta é puro marketing. É só pra vender livro, pelo amor de Deus, até católico eu sou!" Os invasores olharam um para o outro novamente. Esdras tomou a frente. "É o seguinte, não vou te matar logo, mas vou te moer em pedacinhos, cara... Quero ver se você não invoca o que quer que seja pra te salvar". O bandido sacou o canivete, se ajoelhou. "Vitinho, segura o braço dele... Isso, assim. Agora amarra. A mão espalmada... Assim porra!" Esdras começou a enfiar a ponta do instrumento debaixo das unhas do escritor. O homem começou a berrar. Gritou algumas vezes dizendo que não podia fazer nada, que eles eram malucos em acreditar em tais histórias. "Você vai fazer alguma coisa pelo meu irmão", gritava Esdras. Samuel a tudo observava com angustia. Segurava a pistola com o cano apontado para baixo, um joelho dobrado, pé sobre o estofado. Esperava impaciente que o homem cedesse. Era da opinião do irmão. Carlo Moon o ajudaria, ou morreria. "Peguem o que quiserem e vão embora, caras!", gritou o autor. "Ninguém veio aqui pra roubar", disse Vitinho. Esdras caprichou na tortura. O homem berrava de dor, se contorcia. O negócio continuou. Todas as unhas foram destroçadas, forçadas a sair do lugar. Carlo desmaiou algumas vezes, mas foi prontamente reanimado com copos de água gelada. Samuel que estava visivelmente debilitado, pareceu aborrecido. Ordenou que parassem. O irmão o olhou surpreso. Não era comum que lhe desse ordens. Samuel se levantou, a pistola sempre apontada para baixo. "Vamos acabar com isso", ordenou. "Tem uma coisa que todo mundo teme... Tira a roupa dele Vitinho". Os outros entenderam. Não houve hesitação. Rasgaram a roupa do escritor que parecia grogue naquele momento. Samuel se aproximou ainda mais. Apontou a arma para os testículos do homem. "Vai me ajudar ou não?" Em resposta Carlo cuspiu. Uma golfada de saliva e sangue. "Vão se foder!" Samuel piscou os olhos e disparou duas vezes. A genitália do homem foi despedaçada. Gritos, depois gemidos de uma dor absolutamente profunda. Esdras e Vitinho se afastaram um pouco. Apontaram suas armas. Samuel fez um sinal. "Só dois tiros no estômago. Ele vai demorar a morrer, sentindo muita dor!" Dois disparos. O escritor  estremeceu e, embora parecesse impossível, gemeu ainda mais profundamente. Esdras guardou a arma. De repente ficou claro. Era ridículo terem acreditado que aquele homem tinha pacto com o Diabo, poderes sobrenaturais. Era só um escritor de merda que encontrara um público cego e fiel como os fãs do Paulo Coelho. Mas não se arrependia de nada. Bem feito para aquele idiota metido deixar de ser mentiroso. Por 3 dias os homens esperaram em vão por manchetes da morte do escritor famoso. Não houve notícias. Ficaram tremendamente assustados quando viram uma entrevista com Carlo Moon curtindo férias e falando sobre seu próximo livro. "Esse novo livro tem uma narrativa um tanto policial. É sobre 3 homens que invadem a casa de um escritor de histórias de terror e tentam obter deles favores por acharem que ele tem poderes sobrenaturais... " falava o escritor em uma praia do Caribe. Esdras olhou para o irmão exibindo um ar de pura surpresa. "Que porra". Dali a dois dias a polícia chegou na casa dos irmãos com Vitinho algemado. "Vocês estão presos", disse o policial. "Roubo e tráfico!" Mas os homens não foram para nenhuma delegacia. Após cruzarem a cidade, desceram algemados as escadarias de um porão de uma velha casa. Havia uma música estranha, um coro demoníaco. Lá embaixo, foram sentados e tiveram os braços e mãos amarrados. "Bem, rapazes, isso vai demorar", disse o policial e se afastou. Uma figura vestida de preto, usando um chapéu  estranho se aproximou. "Acharam que podiam ficar impunes? Vou lhes ensinar o que é tortura." Olhou para Samuel. "Vou atender seu pedido, tirar esse câncer de você", disse, pegou uma enorme faca e começou a cortar a barriga do homem. Os berros sobressaíram aos cânticos fúnebres que ecoavam. Eu sou Carlo Moon que fala direto com as trevas, disse a figura escura.