sexta-feira, 27 de setembro de 2019

A ALMA DO CAPITÃO DO MATO (Conto de terror)

O caseiro e seus familiares diziam que a chácara era assombrada. Que a noite, cavaleiros fantasmas
cruzavam a propriedade arrastando negros escravos. Diziam que aqueles espíritos estavam condenados na outra vida a repetir os atos praticados antes da morte. Eu e minha namorada achamos divertidas as histórias. Era um tanto mais interessante que muitos filmes. Estávamos na propriedade do tio dela para um fim de semana e era renovador poder relaxar naquele lugar. À noite, tomando um bom vinho, ouvimos as histórias assustadoras do encarregado do lugar. O homem falou que a chácara já fora uma fazenda enorme. O terreno onde estávamos era apenas um quarto do original. Tudo era maior e pertencia a único dono, um senhor de escravos e plantador de cana de açúcar. O homem falava gesticulando, apontando os lugares, construindo narrativas e extensões com as mãos. Disse que ali muita gente vivera e morrera, por isso tantos assombros. Mas disse que não nos preocupássemos, pois os espectros apareciam em geral a distância, sumiam e eram inofensivos. Obviamente que não acreditei naquelas histórias ao pé da letra. No entanto, naquela noite tive um sonho terrível... Ou talvez nem tenha sido um sonho. Em um dado momento, no meio da noite, eu me vi caminhando sozinho na varanda da casa principal. Olhei para a extensão do terreno e vi um enorme alazão montado por uma figura enorme e imponente. Apesar de sua estatura e aparente vigor, o homem vinha de cabeça baixa. Ao se aproximar da casa, fui ao seu encontro. Então vi que havia dois homens de cada lado, vindo com ele. Os três eram negros. A imagem era tão clara e simples que não me causou assombro ou receio algum. Ao se aproximarem, percebi que os dois homens estavam presos ao cavaleiro por cordas. Eles pararam diante de mim... – Aqui estão os negos fugidos, patrão... Pode me deixar ir agora? – falou o homem sobre o cavalo num tom choroso. Olhei dele para os prisioneiros e vi que os dois tinham rostos inanimados, parecendo feitos de pedra. Então a lembrança das aulas de história do Brasil me vieram a mente, o período colonial com seus personagens tão marcantes: Senhor de engenho, feitor, escravos e o Capitão do mato! Ali estava o homem encarregado de capturar os escravos que fugiam. O negro temido e desprezado por todos. Mas ele começou a chorar. Percebi que não eram cordas que o prendia aos outros dois, mas pedaços do seu intestino. Seus cativos pareciam-lhe um peso. Era como uma condenação. Uma sensação terrível de pavor indescritível tomou conta de mim nesse momento. Caí no chão, senti o cheiro de terra. O lamento daquele homem enorme me encheu os ouvidos. Então era possível uma eternidade de sofrimento pelos atos praticados em vida? Aquele sujeito parecia bem atormentado e arrependido... Acordei na minha cama e assim que comecei a apreciar o alívio de um sonho, senti meus pés úmidos, a roupa suja... Fiquei de pé e percebi que tinha o aspecto de quem tinha chafurdado na terra... A terra da chácara.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

O TORTURADO (Conto de terror)

Eu não estava apenas cumprindo ordens. Sim, eu tinha prazer naquilo. E acreditava profundamente
que estava fazendo a coisa certa. E acho que é o mesmo caso daqueles nazistas estúpidos que repetiam exaustivamente a famosa frase: só cumpríamos ordens! Não acho que ninguém que se preste ao papel de executor ou torturador esteja friamente seguindo instruções. Matar ou causar dor a um homem é uma coisa terrível e exige um grau de comprometimento imenso. Embora tenha hoje profundo arrependimento, sei que tudo que fiz, o fiz de coração e prazer. Era o ano de 1969 e trouxeram esse sujeito. Disseram que era religioso e que auxiliava os opositores na luta armada. Iniciamos o interrogatório como sempre: fazendo perguntas e mostrando os instrumentos. Como não disse nada, logo ele estava despido e levando tapas na cara. As perguntas foram repetidas e o sujeito continuou calado. Só emitia algum som quando apanhava. Éramos três, mais o delegado naquela sala. A sessão continuou com xingamentos e ameaças. Suposições de que o homem era um sodomita e que na igreja não podiam existir comunistas. Eu juro que nessa hora, o homem pareceu rir. Nenhum dos meus colegas viu isso, mas ele pareceu sorrir brevemente. E isso era uma indicação do que estava por vir. Colocamos o homem no pau de arara e passamos a apagar as bitucas de cigarro nele. As perguntas continuavam, mas o sujeito apenas negava saber as respostas. Era tão claro que estava mentindo que em determinado momento o delegado perguntou seu nome e ele respondeu: não sei. Iniciamos os choques elétricos. Peito, membros, cabeça, boca e genitália. Ele berrava, mas não dizia nada. Acabou fazendo suas necessidades ali mesmo, mas isso era esperado. Acendemos mais cigarros para disfarçar o fedor e os apagamos no rosto do infeliz. Em um momento, eu o vi olhando para mim. E havia uma expressão de desprezo e superioridade em seu olhar. Voltamos a tortura com força total até a madrugada. Nenhuma informação. O interrogado desmaiou. Saímos da sala conversando, especulando as possibilidades do homem ser o mais durão de todos ou realmente não saber muito. Voltei a sala sozinho depois e vi que o homem estava acordado. E havia algo estranho nele. Toda sua pele estava avermelhada. Por um momento achei que aquilo podia ser em razão dos choques, embora nunca tivesse visto algo igual. Fui e me aproximei dele que olhou para mim. Vi que seus olhos haviam mudado: eram fendidos como os de uma serpente. Ele se soltou com facilidade. Se pôs diante de mim e seu corpo começou a mudar. De um homem de estatura média, se transformou num brutamontes vermelho, de olhos demoníacos, chifres e boca larga. A caricatura de um diabo... Peguei minha arma, mas me senti tonto. O sujeito disse que nos amava. Meus colegas adentraram a sala, o derrubaram no chão, algemando-o. Foi conduzido a uma cela. Ninguém parecia ver sua mudança. No outro dia sumiu. E aquilo se transformou no maior mistério ali. Colegas chegaram a achar que eu tinha facilitado a fuga. Isto apenas porque haviam me encontrado sozinho com ele na sala, solto... E eu de arma na mão sem fazer nada. Fui interrogado e ameaçado. Por pouco não fui torturado também. Retornei as minhas atividades depois. Certo de que o demônio em pessoa tinha vindo ali para nos parabenizar. Perdi o gosto pela tortura e morte. Foi a primeira vez que temi que minha alma imortal fosse para o inferno, na verdade, a primeira vez que cogitei ter uma alma. E assumi quem eu realmente era, independente de ordens.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

O DEMÔNIO DAS 11 E 59 (Conto de terror)

É como a rotina de Sísifo, disse o sujeito infeliz! Acordo pela manhã depois do breve sono recheado
de pesadelos, experimento um instante de descanso e aí começa tudo de novo... Interessante, falou o psicólogo, mas na sua expressão não havia nada condizente com suas palavras. Definitivamente não parecia achar nada interessante. Talvez sua foto até coubesse em um dicionário ilustrado para a palavra: aborrecido. Ainda assim o outro continuou. Não parecia se importar, queria narrar: Vem aquela tristeza, uma sensação de que estar vivo não vale a pena. Tomo meu café e fumo o primeiro cigarro pensando nisso. Pensando em suicídio... No caso, eles, você se refere a quem? Perguntou o homem de ar aborrecido. Aos demônios, claro. Quem mais poderia ser? Eu já falei isso. Eles ficam no inferno e tem esse que vem perturbar! Mas vou já chegar lá doutor, falou o infeliz. Continuou: Eu tento fazer minhas coisas, trabalhar com as vendas. Eu já lhe disse que trabalho vendendo material hidráulico? Sim... Pois é, trabalho, sou especialista em privadas e equipamentos de descarga, mas enfim. Eu fico boa parte da manhã na loja lutando contra os pavores e os idiotas que não entendem nada do fluxo de água e merda. As vozes o tempo todo na minha cabeça, as assombrações que se escondem por detrás das caixas no almoxarifado. É quase impossível não levar um ou dois sustos cada vez que vou lá atrás. Sabe como é, doutor, não tem como acostumar com essas coisas do outro mundo. Lá pelas nove, saio pra fumar um cigarrinho e tomar outro café. De lá de onde trabalho, posso ver minha casa. Eu moro sozinho, mas tem sempre alguém lá. Muito complicado poder ver esse mundo. A gente luta todo dia e o pior é saber que é tudo em vão. Como a luta de Sísifo que eu falei pro senhor... Você tinha dito isso antes. Que vê o outro mundo e é atormentado, mas que tem uma coisa que piora tudo. Que queria saber se o senhor não suspeita que isso apenas coisa da sua cabeça... O paciente pareceu desapontado. Gostaria de contar mais uma vez toda sua história. Subitamente sua imagem agora ficou ideal para o dicionário ilustrado onde tivesse a palavra desapontamento. Ainda assim resolveu continuar: Bem, exatamente às onze e cinquenta e nove, esse demônio chega... Exatamente nesse horário? Nunca atrasa ou adianta? Com essa pergunta o doutor fez o homem falar num tom irritado: Nunca! É exatamente nessa hora, disse! Dá até pra acertar o relógio. Daí em diante fica o tempo todo comigo, me atormentando, sussurrando coisas e me mostrando imagens terríveis... Certo, certo. Em suma, ele lhe perturbada e depois? O doutor quis saber na esperança de obter um resumo. Era a segunda sessão e na primeira o infeliz tinha gastado mais de uma hora descrevendo sua situação até onze e cinquenta e nove da manhã não lhe dando tempo de lhe dizer que conclusões tivera. Pelo visto iria repetir tudo. O que era desnecessário, não importasse a história. Aquilo não era um caso para psicoterapia. O sujeito era mesmo maluco. Tinha alucinações e provavelmente teria que tomar remédios. Falou que ia encaminha-lo para outro profissional. No outro dia soube que ele tinha se matado. Lamentou o ocorrido, porém estava certo de que fizera o que pôde. Umas semanas depois, começou a sentir uma sensação ruim por volta do meio dia. Uma vez olhou para o relógio e viu marcar onze e cinquenta e nove. Sentiu-se observado. Viu uma criatura terrível diante dele. Não, aquilo não podia ser real, gritou uma voz em sua mente. Ele não acreditava em demônios, aquilo não podia ser verdade. Olá, doutor, disse o demônio. Não importa quem seja...

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

NUMA SEXTA FEIRA 13 (Conto de terror)

Nós chegamos ao prédio abandonado na quinta feira a noite. Éramos cinco e coisa estava complicada.
Mais cedo, tínhamos trocado tiros com os homens do governo. Sofrendo vários reveses, o melhor foi bater em retirada. Foi o Bruto que nos indicou o prédio, tinha as chaves para entrar, contatos com alguém que conhecia alguém que era amigo do dono do imóvel. Um prédio abandonado, cinza e atarracado de cinco andares. Bruto disse que havia sido condenado por problemas estruturais. As mais de dezoito famílias que o habitavam, tinham saído às pressas. Além de tudo, o lugar tinha fama de assombrado, informou Bruto enquanto acendia um cigarro. Os outros companheiros, sentados ao redor cuidando das próprias coisas. Só eu escutava o homem. Mas tem perigo, não, continuou ele, tirando grande baforada de fumaça. Com os fantasmas? Eu perguntei. Não sei nada de fantasmas, falou. Tou dizendo da estrutura... Olhei para as paredes e fiquei pensando nas duas ameaças: aquela massa de concreto caindo sobre nós e os assombros que ganhavam força com a chegada da noite. Não importava o ceticismo, o prédio tinha um ar sombrio, tristonho e ameaçador. Talvez fosse apenas o clima bélico que vivíamos, ou o lugar fosse mesmo amaldiçoado. De qualquer maneira, não íamos demorar ali e me concentrei em pensar em coisas práticas. Meus camaradas certamente ririam de mim se eu falasse do receio de vultos do outro mundo. Estávamos no primeiro andar, sentados num círculo e agora só se falava na escaramuça da qual tínhamos saído. Heitor, que assumiu o comando, dava as instruções. Basicamente ficaríamos ali até o outro dia, alguém daria uma olhada na rua e sairíamos um por um, se dispersando para um encontro a ser combinado depois. Haveria também um revezamento de guarda em que cada homem teria um turno de duas horas. O meu começaria às seis da manhã. Deitei no meu canto e fiquei lutando para conciliar o sono. Embora estivesse cansado, não conseguia relaxar. Passei a alternar cochilos leves com imagens perturbadoras a sons e visões tenebrosas nas paredes do apartamento em que estávamos. Eu ouvia passos, sussurros e estranhas sombras se formando nas paredes, parcamente iluminadas pelas luzes da rua. Aquelas coisas dançavam na parede como num teatro de sombras e tinham contornos fantásticos de animais e seres humanoides. Havia mesmo algo passeando naquele lugar e isso se projetava nas paredes. E se manifestava em passos e vibrações como se uma manada de paquidermes espectrais andasse por todo o prédio. Será que apenas eu percebia aquilo? Suportei tudo como bom soldado que afugenta seus medos. Assumi meu turno ainda cansado. Perguntei ao homem antes de mim se ele ouvira algo... Ouvi mesmo umas coisas estranhas, ele disse desconfiado... Mas não vi ninguém. Sob a luz fria da manhã, observando disfarçado a rua, o sono finalmente começou a me atacar. Acordei com o barulho de portas batendo e tiros. Pulei pela janela. Fugi pela entrada do prédio estupidamente desguarnecida pelas tropas do governo. Segui por ruas, sentindo dores terríveis no tornozelo esquerdo. Fugi, abandonei meu posto. Era o dia 13 de junho de 1969, uma sexta-feira. Naquela noite, num ônibus de viagem eu sonhei com meus companheiros mortos. Todos eles me diziam que tinham se juntado às almas dos condenados presos naquele prédio... e que era o culpado de tudo!

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

BOCA DE OURO (Conto de terror)

O sobrenatural era mais absurdo do que se podia imaginar! Foi a conclusão que Carlos teve depois do
episódio. Absurdo e completamente constituído de leviandade, um ilogismo contundente. Ele havia nascido no Recife e desde criança ouvira falar das histórias assombradas da cidade. Chegara a dar uma lida no livro: Assombrações do Recife velho de Gilberto Freyre, o achando enfadonho e desnecessário. Do alto de uma inteligência acima da média, se perguntou porque as pessoas acreditavam naquelas coisas e, mesmo as que não acreditavam, referenciavam aquelas histórias. Pura besteira inventada por gente pobre, ignorante e cheia de superstição. Nunca na vida perderia tempo contando quaisquer daquelas lendas para um filho por exemplo. Uma vez, no meio de uma bebedeira, tarde da noite, relembraram a história de Boca de ouro. Suposta visagem com a aparência de boêmio que punha para correr homens que ousassem caminhar sozinhos a noite pelas ruas do Recife, ainda mais depois de uma noitada. A aparição era um misto de Zé Pelintra com morto vivo. Os dentes todos de ouro e um hálito de carne podre e enxofre. Obviamente que não ficou pensando nisso, descartando a narrativa como fizera com as outras. E então, numa noite, saído de uma festinha com os amigos no bar, resolveu ir a pé para o apartamento de um primo que o oferecera guarida naquela noite. Cruzou a praça e quando chegou na larga avenida, viu um sujeito todo de branco vindo em sua direção. Pelo que sabia, aquele não era um lugar perigoso, dado a assaltos, mas não podia se confiar nisso. Tratou de apressar os passos, entretanto, o outro foi igualmente rápido. Aproximou-se... “Tem fogo?”, perguntou o sujeito, cigarro na mão. Ele vestia um terno branco, os sapatos caprichosamente engraxados e um chapéu Panamá inclinado, que ocultava boa parte do rosto. Carlos disse que não fumava. Embora em noites de bebedeira, fumasse vários cigarros, mas não se considerava fumante e muito menos tinha cigarros. O homem de branco riu e afastou o chapéu para trás. A primeira impressão foi de que aquilo se tratasse de uma brincadeira. O sujeito tinha o rosto esverdeado, parte da bochecha e orelha carcomida como se fosse um cadáver... Mas nada que um maquiador mancomunado com algum tipo de brincadeira sinistra não fosse capaz de engendrar com habilidade. “Não é engraçado”, falou Carlos. O sujeito de branco gargalhou exibindo os dentes brilhantes, dourados... Boca de ouro! “Que brincadeira é essa?” , indagou e na mesma hora sentiu o fedor de carne podre misturada a algum componente químico. Carlos correu. Agora tinha entrado com tudo naquilo, na lenda toda, dos que fugiam do Boca de ouro. Mas e se fosse uma brincadeira como suspeitara? Que se danasse, não ia ficar para ver. Correu até doer-lhe o ventre, as pernas, ficar ofegante até não poder mais. Parou e então viu a aparição ali, bem diante dele... Bem, não havia mais explicações lógicas! Aquilo estava acontecendo. Como? Não tinha ideia! Não fazia sentido, aquelas coisas não podiam existir! Acabariam com toda a racionalidade que conhecia. Boca de ouro se aproximou rindo e Carlos, fraco, sem fôlego, questionando o universo, desmaiou. Acordou no outro dia, ajudado por transeuntes, sob a luz da manhã. Um conhecido disse-lhe para ter cuidado com as bebedeiras, chegar a dormir na rua não era nada prudente. Refeito, contou para o primo e amigos sua desventura. Sem exceção, pediram para que deixasse de troça, tomasse cuidado com a bebida. Carlos então se sentiu sozinho em sua miséria, na destruição do mundo em que acreditava. Examinou tudo sob os mais diversos ângulos não achando motivo para delírio. Nem sequer estava bêbado pra valer. Todo o absurdo era real. Imaginava que se existisse um sobrenatural, seria algo organizado, discreto, nada espalhafatoso... Mas não, tudo era absurdo dentro de absurdo e ria dele. Talvez Boca de ouro fosse exatamente isso. O riso sobre certezas que descartam o inusitado, repetido pelos mais humildes que aceitam todo tipo de visagem e duendes sem preconceitos.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

JOGO MORTAL (Conto de terror)

Eram três... Três moleques com perfis absolutamente comuns. Tipos que nascem e fervilham nas
periferias em todas as partes do mundo. Gostavam de futebol, TV, vídeo games e bobagens da internet. Também gostavam bastante de filmes e histórias de terror, mas nada se comparava ao interesse em desafiar um ao outro em brincadeiras estúpidas de demonstração de coragem. Quem tinha coragem do comer a pimenta vermelha do quintal da Dona Carla, fumar mais cigarros de uma vez, entrar no terreno de tal vizinho enfrentando cães bravos ou passar de bicicleta na calçada do Velho Matias, que corria atrás de quem fazia isso, ameaçando dar tiros de sal no engraçadinho. Lino, Guto e Valdo. Valdo tinha quinze e os outros dois, quatorze anos de idade. A garantia de dor de cabeça na escola para qualquer professor. Em certa ocasião, haviam, em desafio mutuo, escalado uma imensa mangueira na praça do bairro. Não conseguiram descer. Foi necessário que o caminhão do corpo de bombeiro viesse resgatar os três moleques. Apesar das reprimendas dos adultos e pais, foram recebidos na escola como heróis no outro dia. O que os fez alimentar ainda mais o gosto pelos desafios. Num fim de tarde, com outros moleques, ficaram ouvindo histórias sobre o célebre assassino do bairro, George Alves, conhecido como George Gore, que matara cinco viciados e escondera os corpos. Falaram que, na sua casa em ruínas, diante de um velho espelho, era possível invocar a imagem do matador. Bastava chama-lo três vezes seguidas com uma vela na mão. Credo, disse um dos moleques presente. Deus me livre, falou outro. Ninguém teria coragem de fazer um negócio desses... Os garotos foram indo embora. Apenas Lino, Guto, Valdo e outro garoto ficaram. Este último era quem explicava como funcionava a brincadeira. Dizia que só quem tivesse muita coragem faria uma coisa daquelas. E foi então que os três amigos começaram a velha mania de desafiar um ao outro. Miqueias, o outro garoto achou que não fosse um desafio que se fizesse a ninguém. Era perigoso ver a alma de George Gore. Diziam que ele voltava do túmulo e matava pessoas. Os outros duvidaram, mesmo achando possível ver alguma aparição. A alma dele pode até aparecer, mas matar... Fantasma não mata ninguém, galera, disse Guto. E assim o desafio tomou ares de divisores de água entre corajosos e covardes. Miqueias os advertiu novamente antes de ir. Os garotos ficaram um tempo calados, mas logo voltaram ao assunto. Minutos depois estavam diante da suposta casa de Gore. O que não era verdade. Da casa do maníaco, restava apenas o terreno baldio. Aquela era apenas uma residência próxima do acontecido, entretanto, suficiente para receber atribuições da casa do assassino por causa de seu aspecto abandonado. No lugar da vela, decidiram usar um isqueiro. Tinha chama, devia funcionar. Guto foi o primeiro. Os dois ficaram olhando sua bicicleta. O garoto entrou e foi até a sala. Tentava se concentrar em realizar o desafio logo e deixar a obrigação para os outros. Achou o espelho no corredor. Estava quebrado, apoiado na parede. Acendeu o isqueiro, suas mãos tremiam. George Gore, George Gore... Antes que pudesse falar a terceira vez, um facão acertou a lateral de seu pescoço e parte da nuca. Caiu no chão e a arma desceu violenta e certeira mais vezes. Bem na garganta, o impedindo de emitir maiores sons. Lá fora, Lino impaciente, disse que ia ver o que acontecia. Soltou a bicicleta. Foi e logo que encontrou o corpo do amigo, foi atingido de forma semelhante. Valdo ficou hesitante. Por que tanta demora? Talvez os dois estivessem lá dentro esperando para pregar-lhe uma peça. Bem, não ia cair naquela. Saiu pedalando, mas logo deu meia volta. Não aceitaria ninguém o chamando de covarde a semana toda. Entrou na casa com bicicleta e tudo. Foi recebido com um golpe na testa. Caiu e foi esfaqueado rápida e violentamente. Então o mendigo, o velho Jonas, com o facão ensanguentado decidiu que era melhor ir embora dali. Aqueles demônios não iam parar de vir, pensou ele. George Gore não vinha, mas mandava os deles, concluiu. Melhor ir embora.