domingo, 26 de agosto de 2018

DEMÔNIOS DE CARNE E OSSO (Conto de terror)

Foi como uma explosão! Um choque! Eu levantei num impulso, pois meu sono leve era uma espécie de vigília. Algo no meu inconsciente não me deixara adormecer. De certa forma eu já sabia que algo ia acontecer. Eu os tinha visto logo que chegamos. Os caras estavam na esquina fumando cigarros e observando. Ficou claro que olharam pra nós com bastante interesse. Sabiam que eu não era dali. No mesmo momento pensei que ia ser abordado. Maluco que vinha de fora tinha mais é que ser depenado por malandro velho da área que é quem canta de galo. E era bico calado senão a faca ou a bala é que resolvia o resto da história. Imagino que eles não contavam que eu vinha de uma periferia talvez mais feroz que aquela. Estava atento. "Malandro prevenido dorme de botas!", dizia meu tio, bandido velho que selou seu destino na cadeia, não obstante os rogos e apelos de minha avó. Eu e minha namorada fomos até à casinha. Pequena propriedade da família dela, sem uso específico no momento. A gente ficou de boa, tomou vinho, fez amor, ficou conversando e ouvindo música. Em alguns momentos, olhei pelas frestas das portas e vi que os dois continuavam lá fumando cigarros. Algo me dizia que eles não tinham me esquecido. Falei para minha namorada sobre a intenção dos malandros, conhecia bem o esquema. Nas esquinas onde eu morava, a mesma vadiagem, de butuca ligada pra fazer um lance. E tinha também a hostilidade para com os caras de fora que ficavam com as minas do bairro. Velha posse animal, machista. O pacote era completo! Eu conhecia bem, tivera vários amigos que haviam trilhado por este caminho. Eu mesmo recebera o convite incontáveis vezes. Eu nunca fui um nerd sem jeito para confrontos físicos, mas preferi o caminho do estudo ao da grana fácil das esquinas. Minha família simples por trás disso tudo, ainda que tivesse suas ovelhas perdidas como meu esperto e falecido tio. Meu conhecimento da violência tinha duas faces: a realidade de onde eu vivera e a analise tranquila nos bancos de faculdade. Havia sido lá que conhecera minha namorada. Muitas e muitas discussões nas aulas de antropologia sobre as raízes da violência, do preconceito e descaso na nossa sociedade. Acabamos indo trabalhar num projeto que resgatava moleques em situação de risco. E agora naquele momento de descontração, o confronto com a realidade que a gente discutia, enfrentava socialmente. Quando eles bateram na porta, eu levantei, ainda um tanto atordoado, mas já antevendo que os caras da esquina estavam ali tentando invadir. Em dois passos rápidos, tratei de bloquear a passagem deles. A porta se dividia em duas partes e eles forçavam a parte superior. Com as mãos espalmadas, tratei de dar suporte. Não dava pra confiar no frágil ferrolho, numa porta frágil. Minha namorada observava, olhos arregalados. Os caras batiam e empurravam. Mudei de posição, apoiando com o ombro. Fiz sinal para que minha namorada se preparasse para uma possível invasão. Dava pra ouvir os caras cochichando. "Porta dura da porra!" , um deles falou. "Acho que o maluco tá segurando", adivinhou o outro. Eles reforçaram o ataque. E não foi o frágil ferrolho que começou a ceder, mas uma das dobradiças. Era questão de tempo para que eu e a porta não resistíssemos. Bastava a parte superior ceder e pronto, eles entrariam. Pelo menos um deles tinha uma faca. Isso era um fato. E talvez, eles não se contentassem apenas em roubar. Minha namorada veio me ajudar a segurar a porta. Os caras atacavam, esperavam, recomeçavam. Suponho que eles davam pausas nas investidas para observar ao redor. Por mais que a periferia fosse conivente com os crimes ali, ninguém gostava de testemunhas. Minha namorada e eu nos olhamos nos olhos. O rosto dela brilhava de suor e eu também sentia meu rosto molhado. Eram momentos de desespero e milhares de coisas passavam na minha cabeça. Ali, naquele recinto mínimo, com aqueles dois, as possibilidades nefastas se multiplicariam indefinidas. Bastava que aquele pedaço de madeira se desprendesse. Em dado momento tudo ficou parecendo um sonho. E o tempo do ataque, a nossa resistência não deve ter levado mais que uma dúzia de minutos, mas pareceram horas. Não posso descrever todas as coisas que passaram pela minha cabeça naquele espaço de tempo. Recordo apenas de ter conseguido pensar com clareza e, digamos, alguma frieza. Eu olhei para os lados e vi um pedaço de madeira. Parecia uma tranca de porta que, curiosamente não se encaixava ali - não havia os suportes de metal laterais, destinados para tal fim. Acho que na ultima reforma daquele barraco, haviam removido esse recurso. Quando percebi que nem a porta, nem meu ombro resistiriam mais, eu olhei para minha namorada e fiz sinal para que ela se afastasse. A incompreensão e o pânico em seus olhos me fulminaram. Indiquei para ela com o queixo o pedaço de madeira. A expressão dela mudou, exibiu um entendimento: melhor deixar eles entrarem e depois tentar convencê-los a desistir sob ameaças de pauladas. Ela não pareceu concordar, mas se afastou, pegou a madeira e me ofereceu como uma espada. Nessa hora a outra dobradiça afrouxou. Num pulo me afastei da porta e peguei o pedaço de pau. Minha namorada se postou atrás de mim. E tudo aconteceu muito rápido, sem negociação, palavra alguma ou hesitação. A porta cedeu ficando dependurada, eles invadiram. Ergui a tranca de porta com as duas mãos acima de mim, balancei para confundir e apliquei o golpe certeiro na cabeça do primeiro. Ele foi ao chão num instante. O outro, de faca na mão, balançou para os lados. Ergui novamente minha arma acima da cabeça: posta di Falcone, a guarda do falcão! Esperei ele vir. Ele veio. Meu golpe o acertou na lateral - acredito que ele esperava um golpe de frente. Revezei o ataque acertando-o todas as vezes. Ele caiu. No meu medo e desespero acertei as cabeças deles inúmeras vezes, os dois caídos aos meus pés, sem misericórdia alguma. Ouvi claramente quando os crânios racharam. Quando terminei, olhei para minha namorada atônita e pedi para que ela fosse buscar o carro. Para nossa pequena aventura, tínhamos estacionado na outra rua. Perto da casinha, o automóvel obstruiria a rua estreita. Minha namorada sem falar nada saiu correndo no meio da noite. Eu saí e olhei para os lados. O vento frio trouxe um choque de realidade. Eu havia matado duas pessoas. Os primeiros golpes se justificavam, mas e os outros? Eu tivera tanto receio que só vi a possibilidade de ficar em segurança se os eliminasse. Mas era simples assim? Olhei para todos os lados. Não havia sinal algum de que alguém tivesse presenciado aquilo. Minha namorada veio. Colocamos os mortos no porta malas, pus a porta no lugar de qualquer jeito. Num descampado, não muito longe dali, jogamos os corpos. Sabia que o certo era chamar a polícia, seguir a lei, declarar legitima defesa, mas me vi confiando na impunidade. No descaso que as autoridades teriam para com dois indivíduos que provavelmente tinham fichas criminais - e esse pensamento em si já era preconceituoso. Mas meu palpite estava certo. Não houve investigação, nem testemunhas, nada. Todos entenderam o crime como o destino comum de dois malacas como aqueles. Ninguém se importava. Quanto a mim, carrego para sempre a culpa. Não queria ter oferecido flores para aqueles dois sujeitos naquela noite, mas não queria ter combatido o demônio com o mesmo ódio do demônio. Nunca contei essa história. Não gostaria de ser julgado por ninguém além da minha própria consciência. Não sou religioso, mas espiritualizado e me incomoda bastante essa culpa assim, como a imagem deles que me aparecem certas noites. Eu os vejo de pé, sangrando pela cabeça, me lançando olhares de censura, dizendo: "Não precisava disso, mano... Cê vivia falando contra a violência e cadê? Fez isso sem necessidade!" Sei que eram demônios em vida, o seriam no além, todavia não queria seu sangue impuro em minhas mãos.

domingo, 19 de agosto de 2018

RUA DOS ESPÍRITOS (Conto de terror)

A fama da rua tinha se iniciado por causa do imenso terreiro de umbanda do pai Neto. Isso tinha sido
nos anos 60. Pai Neto era famoso e tinha uma legião de admiradores. Os mais velhos contavam que nas noites de sábado, os carrões estacionados na rua eram todos de políticos importantes. Diziam que mais de um governador do estado tinha sido cliente do famoso Pai-de-santo. Pai Neto, morreu assassinado na calçada do próprio terreiro vítima de um marido ciumento. Depois de preso, o homem justificou o assassinato dizendo que sua mulher tinha um caso com o umbandista. A mulher negou tudo, mas os inúmeras facadas que o sujeito desferiu no suposto amante da esposa justificaram pelo menos a passionalidade do ato. O terreiro fechou, mas pouco tempo depois dois umbandistas jovens e promissores abriram seus estabelecimentos bem próximos. Assim a rua pôde continuar movimentada nas noites de sábado. Nenhum dos locais tinha o mesmo apelo que o grandioso terreiro dos tempos áureos, mas juntos convertiam um fluxo de fiéis que alcançava o movimento dos tempos passados. No principio, os dois terreiros eram concorrentes e houveram disputas entre seus respectivos donos. Certa vez mãe Toinha e pai Chagas trocaram palavras duras quando se encontraram numa feira do bairro. A briga, na ocasião, causada pela disputa na compra de umas raízes, embora todos soubessem que o verdadeiro motivo fosse a rivalidade. Esperou-se pelo pior, mas tudo foi resolvido pouco tempo depois e os terreiros passaram a conviver em harmonia, embora uma discreta concorrência ainda existisse. Lideres dos terreiros se sucederam ao longo dos anos e a rivalidade variou ao longo dos anos. A rua, que se chamava oficialmente rua Aluísio Azevedo, passou a ser conhecida como rua dos espíritos. Além dos terreiros, foi aberta uma loja com produtos de utilidade misticas, o que garantia mais movimento e identidade. O local onde antes era o primeiro terreiro, transformou-se numa churrascaria. Churrascaria divina, era o nome. Alguns clientes e empregados do local diziam que tarde da noite, na parte mais escura do espaço, perto do imenso muro, se viam espíritos e vultos. As vezes no banheiro alguns se deparavam com visões estranhas e sussurros. Todavia, essa fama de lugar com manifestações sobrenaturais não afastava ninguém. Os bebuns do local, assim como os clientes mais refinados adoravam as histórias e disputavam o espaço. Depois se percebeu que cada canto da rua tinha histórias de aparições e fenômenos estranhos. Os moradores antigos e novos davam contas de narrativas absolutamente incríveis. E que Deus tivesse dó de quem não tivesse respeito. Havia várias histórias de castigos imediatos para os profanadores. Como o de um sujeito que foi na churrascaria, bebeu muitas cervejas, xingou espíritos e entidades e foi assassinado à pauladas na calçada do próprio estabelecimento por motivos desconhecidos. Em outra ocasião houve uma discussão sobre a existência ou não de almas do outro mundo que terminou num tiroteio. O resultado foi um dos contendores morto e duas pessoas feridas. Também havia o macabro assassinato de Wilton, conhecido sem teto, bebum que andava por ali. Ele sempre xingava os terreiros, seus donos e as entidades. Foi encontrado morto numa manhã de sábado, com o ventre aberto. Parte de suas vísceras espalhadas pelo chão. A polícia nunca descobriu o autor do crime. Os boatos falaram de rituais satânicos, pois segundos alguns, órgãos do homem estavam ausentes. Os donos dos terreiros iniciaram juntos uma campanha de purificação para afastar as más vibrações que começavam a querer dominar a rua. Uma coisa era crença geral: não havia lugar com um fluxo maior de almas e divindades que a rua dos espírito, antiga rua Aluísio Azevedo. Apesar dos acontecimentos violentos, de histórias de feitiçaria interesseira, o lugar se mantinha firme como um lugar de devoção e busca espiritual. "As coisas ruins gostam de se aproximar de quem faz o bem", dizia pai Miguel. "Nós temos que ficar vigilantes o tempo todo." Foi no meio dessa fama toda que D. Silvana comprou uma casa na rua dos espíritos. Acreditava que somente naquele lugar podia realizar seus intentos. Passara anos juntando dinheiro para comprar uma residencia naquele lugar que considerava sagrado. Todavia, o que ela buscava não era visto como algo nobre pelos lideres espirituais do lugar. Mas D. Silvana mantinha isso muito bem em segredo. Foi numa noite de sexta feira que ela fez um louco e hediondo ritual que tinha como objetivo evocar forças demoníacas. Naquela mesma noite, uma gangue realizou um massacre atirando a esmo nas pessoas. Foram oito mortos e inúmeros feridos. O motivo do ataque tinha sido motivado por causa de uma disputa de território para a venda de drogas. "Se a rua dos espíritos não for nossa, não vai ser de ninguém", dissera um dos autores do massacre. D. Silvana acreditou ter sentido a presença de demônios naquela noite. No outro dia, enquanto todos estava de luto, ela sentou-se nua sobre símbolos desenhados no chão do quintal e viu diante de si, as almas do mortos recentes e diabos pretos e vermelhos. "É o fim da rua dos espíritos, agora essa rua é minha e dos demônios!"

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Minha primeira coletânea de terror rolando pela net - SANGUE NO CÍRCULO


São dez histórias onde o terror tem como palco a vida urbana, mas com profundas origens nos arquétipos clássicos: vampiros, lobisomens, maníacos assassinos, seitas satânicas, rituais. Tudo isso é material para o horror novo dessas histórias. Novas abordagens dos temas clássicos inovando velhos medos e horrores, com novas pitadas de loucura e espanto. São contos semelhantes a obras de media metragem, onde as histórias se desenvolvem gradualmente evitando fins abruptos. A história que dá título a coletânea inclui uma abordagem de vários pontos de vista de um mesmo acontecimento e foi escolhida exatamente para mostrar as várias maneiras de se contar uma mesma história. São dez contos de horror moderno bem embasadas em medos clássicos, mas sem descartar as loucuras e os mistérios modernos.

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